Tácticas... e contradições...

Um dos argumentos mais caros à Esquerda na defesa do direito das mulheres à interrupção voluntária da gravidez era o de invocar a " liberdade de a mulher poder dispôr do seu corpo". Inteligentemente, desta vez, este argumento foi deixado cair! Tácticas...
Não concordo com a maioria dos argumentos a favor do sim. Sou mais sensível às razões que o não evoca. Mas... (sem grande convicção) vou votar sim. Contradições...
Uma casa portuguesa...

Hoje era dia de ir dar brilho aos sapatos ali junto à centenária "A Ginginha", entre o Teatro D. Maria II e a Igreja S. Domingos. Lá fui. Dizia o meu engraxador para o camarada (de profissão) que lhe estava à ilharga, com aquele emblemático sotaque sibilante das Beiras:
– Tu sabes o que vai ser o meu jantar logo à noitinha!?
– Não, ainda não mo disseste...! Resposta à monsieur de la palisse (como gostava de dizer a Cecília) do outro.
– Muamba! Vou comer uma muamba! Carago!
(Não sei o que me deu mais forte em mim. Se este impulso de vir a correr registar esta cena do quotidiano desta Lisboa bairrista e... multicultural, se a vontade de me atirar de imediato a uma muambada com funge, jindungo e tudo!)

Uma História (Henrique não prometo...)

Estava um dia abrasador. Apesar da impiedade com que o Sol àquela hora ameaçava fustigar quem ousasse desafiá-lo, era grande a correria e a gritaria, e sufocante o manto de poeira que logo se levantava. A hora era a do recreio das dez. O mais longo dos períodos que intervalavam as aulas da manhã, e, naturalmente, o mais impacientemente desejado. Não havia tempo a perder: Os que eram capazes de dar dois toques seguidos na bola sem a deixar cair, e de a controlar vitoriosamente até aos montinhos de areia que singelamente demarcavam as balizas, fazendo sentar com um gingar de corpo quem lhes surgisse pela frente, organizavam num abrir e fechar d’olhos uma aguerrida jogatina – tantos para um lado, outros tantos para outro. Os dotados de inato talento, naturalmente, eram os primeiros a ser seleccionados. Ora para um lado, ora para o outro.
As raparigas, e os rapazes que ficavam de fora daquela implacável triagem, optavam por um outro jogo mais saudável – a barra do lenço. Apenas exigia concentração e velocidade na corrida. Para os rapazes, envolvia um atractivo extra – às vezes a desenvoltura e a corrida atabalhoada desnudava as pernas das raparigas bem mais acima do que era habitual e apercebiam-se, boquiabertos, de formas que só em puros devaneios eram tangíveis. Nos dias que se seguiam, à noite, o deslumbramento dessas visões convocava inevitavelmente a fantasia de quem tinha tido esse supremo privilégio; Os mais impetuosos e inclinados a alguma violência elegiam um outro passatempo. Chamavam-lhe o garrafão: o azarado que se distraísse e fosse tocado pela mãe dentro das linhas do denominado garrafão (desenhadas no chão com a simplicidade de uma gravura rupestre) era severamente punido com tapas ao longo do dorsal enquanto não lograsse alcançar e tocar, ainda que fosse com aponta dos dedos, o muro distante que fora previamente escolhido para coito.
Aquela algazarra e gritaria, misturadas com as ondas de poeira em ebulição, abafavam seguramente o costumeiro alvoroço do mais animado mercado árabe.
Apenas um rapaz franzino, cabelos ondulados e castanhos, calções curtos e justos ao adelgaçado corpo, que contava quase tanto de idade como os dedos das suas pequenas mãos, se isolara daquela enorme balbúrdia e agitação. À sorrelfa, mas sem deixar no entanto de assumir um estilo que, claramente, procurava que se assemelhasse a um dos galãs de cinema que venerava, levou à boca a beata que restara de um cigarro que na tarde anterior surripiou do cinzeiro de pé que cirandava pela sala de estar da casa de um tio que lhe era muito querido. Deu umas baforadas e encostou-se ao velho muro, empalidecido pelo tempo, que delimitava o átrio do colégio do passeio que ladeava a artéria principal daquele lugar distante, parado e perdido nas savanas do continente Africano.



Com a cabeça levemente inclinada para o chão, ora pontapeando os pedaços de argamassa que se iam soltando do carcomido muro e das paredes envolventes, ora calcando premeditadamente o escasso e raso capim, que rente ao muro conseguia sobreviver ao jogo da bola e àquelas desvairadas brincadeiras que ali diariamente se repetiam, ali estava o Edmundo, pensativo, encostado não só àquele velho muro, mas também a uma pergunta que há muito tempo o assaltava e para a qual não tinha ainda encontrado resposta e não sabia se alguma dia a encontraria. Era algo de estranho. Algo que não sabia explicar. Um mistério que apesar de muito nele cismar, não lograva decifrar.


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Poemas (ridículos) de amor, quem um dia os não fez...? (I)


Há sempre um cais onde esperar

Uma sombra onde repousar
Uma palavra por inventar
(Uma caipirinha que se bebe
Sem nunca acabar)

Um sorriso

Que se detém nos teus lábios sem se desfazer
Um fim de tarde
Que baloiça na linha do horizonte
E se recusa a escurecer

Um rio

Que corre sem nunca desaguar
Um barco que vai e volta
Redemoinha nos teus seios
Perde-se em círculos na tua cintura…
Onde eu, louco viajante
Me deito a navegar

Espantoso...


É espantoso. Condoleeza Rize, é hoje a Secretária de Estado da nação mais poderosa do planeta! Espantoso: Há quarenta anos apenas, então menina, era lhe vedado beber da mesma torneira em que bebiam os meninos brancos, não podia apanhar o mesmo autocarro ou frequentar a mesma escola. Por uma simples razão. Ser negra. Hoje lidera a política Externa e de Segurança dessa mesma nação que durante os melhores anos da sua juventude a segregava e humilhava.
É espantoso o passo largo, firme e decidido que os EUA deram em tão pouco tempo – menos de uma geração – no reconhecimento do direito a uma cidadania igual e plena a todos os seus cidadãos. Em nenhum outro país do mundo se assistiu (ou se assiste) a um tão rápido processo de integração efectiva dos cidadãos de outras cores ou credos. Percorro as caras dos ministros dos governos Europeus, em particular das ex-potências coloniais que por força da história acolhem desde há muito comunidades de diferentes raças, e não vejo nenhum negro, indiano ou asiático. E altos funcionários do Estado, há-os!? Alimento algumas dúvidas. E apresentadores de Televisão!? Os dedos de uma mão bastariam para os contar (veja-se, em contraponto a CNN). No entanto esta Europa enche todos os dias a boca com seu multiculturalismo e com o seu modelo de integração querendo muitas vezes, com altivez e arrogância, cotejar, neste campo, com os EUA. Espantoso.

Não sei que idade terá a Condoleeza Rice. Será mais nova do que eu. Pouco mais. Mas ao vê-la, há dias, numa entrevista de carácter pessoal, recordar sem qualquer azedume, sem ponta de rancor (tão frequentes e inusitados, embora até compreensíveis), a segregação racial de que fora vítima durante os anos sessenta nessa grande democracia, quer queiramos ou não, que efectivamente são os EUA desde a sua fundação, não pude, dizia, deixar de rememorar, inevitavelmente, os meus tempos de Escola em Angola, nesses mesmos anos sessenta – os derradeiros do vasto período colonial (colonialista, como sublinharia eu próprio nos meus anos de militante leninista) – em pleno regime Salazarista:

Os meus colegas do Colégio eram na sua maioria brancos. Apenas havia dois negros (pretos, como aludíamos nós), e alguns mulatos. Três dos mestiços, o Alberto, o João e o Manecas eram, e são felizmente, meus primos direitos. Éramos, e felizmente somos, como irmãos. Pretos, eram, na realidade só dois. O Satumbo e o Chandamisssa.

Eram poucos (noutros lugares seriam bem mais), muito poucos, mas frequentávamos o mesmo Colégio (privado), pagávamos as mesmas propinas, corríamos pelos mesmos corredores, frequentávamos as mesmas salas de aulas, sentávamo-nos nas mesmas carteiras, jogávamos com a mesma bola e... bebíamos da mesma torneira, nesses mesmos anos sessenta!




Nós – eu, os meus primos, o Santumbo e o Chandamissa - em regime colonial e em ditadura, e a Condoleeza Rice (uma grande senhora, quer gostem ou não) e as suas quatro amigas (brutalmente assassinadas numa Igreja Baptista por aqueles que defendiam a discriminação racial com injustificada ferocidade ), num país livre e desde a sua origem uma grande democracia... Espantoso!

Uma história ( parte II )

.... Era algo de estranho. Algo que não sabia explicar. Um mistério que apesar de muito nele cismar, não lograva decifrar.

Ao fundo do quintal da casa onde vivia, junto a uma papaieira que se erguia, esguia e altiva, para o céu, permanecia já há alguns anos, no meio de muita tralha que por lá havia, um velho tambor de gasolina, vazio, enferrujado e que há muito deixara de ter qualquer serventia a não ser a de o velho cozinheiro lá de casa – o Miápia – nele se empoleirar, e com uma vara bifurcada numa das pontas colher as deliciosas papaias antes que elas viessem a sucumbir de maduras à lei inexorável da gravidade e se esborrachassem inevitavelmente no chão.


Cada vez que o pequeno Edmundo – constatava ele – acertava no enferrujado e vazio tambor com um pedra ou mesmo quando o percutia com o nó dos seus pequenos e inábeis dedos ou com qualquer outra coisa que fortuitamente tivesse à mão, o som que se fazia ouvir – uma toada que se prolongava por alguns segundos até se esvair, como se de um crepúsculo se tratasse – tinha, sem saber porquê, e era essa a pergunta que há muito o consumia, o misterioso dom de o transportar para a longínqua aldeia onde, poucos anos, antes nascera. Naquele instante sentia-se apresado por um estranho estado de alma, vago e nebuloso que teria sérias dificuldades em o caracterizar se alguém o interpelasse. Melancolia? Nostalgia? Saudade? Eram vocábulos dos quais não conhecia ainda a verdadeira significação. Mas fosse o que fosse, o certo é que aquele suave emaranhado de sentimentos o deixava tão consolado e tão acalentado, que era como se regressasse por felizes momentos ao útero materno. E... apetecia-lhe fazer ecoar de novo o tambor. Atirava-lhe uma outra pedrinha e… mal soava a mágica toada, aquela bruma de sensações, enevoada e amena, voltava a envolvê-lo e, estranhamente, a aconchegá-lo. E regressava de novo a aldeia… – Vilar dos Vinhedos, uma aldeia de Trás-os-Montes.

Nada visualizava, porém. Nem a casa onde nascera, nem as grandes lajes romanas que faziam o caminho de sua casa ao Largo do Adro, nem as tílias que tarjavam a Igreja oitocentista onde fora baptizado. Nada visualizava. E de nada se lembrava. Não tinha a mais ténue recordação daquele lugar que lhe assaltava a memória mal ecoava aquela mágica melodia.
Naturalmente que nenhuma imagem, por mais esbatida que fosse, ficara gravada na sua lembrança: a mãe, ele e a irmã de colo, tinham deixado os vinhedos, os quelhos, o largo do Adro, as lajes romanas, o Senhor da Capelinha, nos idos de Abril de 1953, apenas três meses depois de cumprir o seu segundo aniversário!

Embarcaram num dia chuvoso, em Lisboa, no paquete "Mouzinho" da Companhia Colonial de Navegação que fazia a sua derradeira viagem pela costa da Àfrica Ocidental Portuguesa, com destino ao Lobito



Comtinua... se calhar...