Fotos da minha vida - III (Os bichos-do-mato)



No imaginário de muito bom português (intelectual ou não) a vida dos colonos em África era uma vida fácil. Bastava abanar a árvore das patacas e estas, ao primeiro abanão, caíam aos molhos no regaço dos colonos, como as mangas caíam de maduras (e aos montes) no chão. De acordo com essa "visão histórica" a preto e branco, que ainda prevalece (e prevalecerá, assim o obriga o politicamente correcto onde estamos atolados), além de fácil, era uma vida de exploração crua e nua dos colonizados. Mas a realidade não era bem essa. Em África, a vida dos colonos era dura e arriscada (e dos colonizados também, claro). Eram difíceis as condições de vida. Para quem vivia longe das pequenas cidades, mais árdua era a luta pela vida que, ao fim e ao cabo, é o fado a que os comuns dos mortais, para muito longe que tentem fugir em busca de uma vida melhor (como fizeram os colonos), não logram escapar. A vida dos colonos portugueses pelo Além-Mar, não deixou de ser, como a de muitos outros por esse mundo (a dos emigrantes portugueses, por exemplo), uma verdadeira luta pela vida. Como sempre, é assim a vida, uns ganharam-na. Muitos perderam-na.

Em África, quem se dirigia à cidade não dizia que vinha de um pequeno lugar, dizia que vinha do mato, porque a expressão vir do mato ou ser do mato traduzia melhor a lonjura e o isolamento  de onde se vinha. E os que se afeiçoavam a este modo de vida, e só muito raramente desciam à localidade mais próxima, eram os chamados bichos-do-mato.
Esta ponte, como tantas outras, é bem o retrato do grande isolamento e dos riscos em que se vivia no mato. Eram pontes como esta, de troncos, que separavam (pela sua eloquente fragilidade)  e uniam (como único e obrigatório ponto de passagem) a vida no mato e a vida nas pequenas povoações. Lembro-me bem desta. Era arrepiante atravessá-la (hoje é ainda assustador olhá-la). Tudo rangia: as molas da Bedford (que "pegava" à manivela), os pilares da ponte, a carga de sisal, a carroçaria. Tudo abanava. O ajudante, em cima da carga, segurava-se ao barbante que amarrava o fardo, como um boieiro ao cavalo num rodeio. O camionista tinha que saber apontar bem a camioneta às tábuas da ponte que serviam de trilho.

Como se pode constatar pela foto. naquele dia não chovia. Imaginem, agora, atravessá-la debaixo de uma daquelas "torrenciais chuvadas” africanas! Era uma aventura. Era um risco de vida.
Não era fácil a vida dos colonos. E a dos colonizados também. E foram eles os colonos (e, claro, claro, os colonizados também) que, deste modo, construíram a hoje tão cantada lusofonia com que os bem pensantes enchem a boca esquecendo-se que foram os colonos, tão detractados pelas suas próprias bocas, que ao longo de séculos criaram os laços que unem hoje os povos da lusofonia.
 


Fotos da minha vida - II (Nós, os Mendes e o Quendo)




Das fotos da minha infância, esta tem a minha clara predilecção. Vivíamos no mato. No Quendo. Um aglomerado populacional composto por... duas casas! A nossa e a dos Mendes. Ao todo, éramos nove almas que ali vivíamos. Felizes. Longe da “civilização” mais próxima que era o Cubal. Na nossa camioneta, que "pegava" ainda à manivela, demorávamos, no tempo seco do cacimbo, mais de meio dia de viagem  e um ou dois no tempo das chuvas, para chegarmos à tal "civilização". Os nossos pais lutavam pela vida, ali, naquele lugarejo,  e nós, pequenotes, saboreávamos a doçura da meninice, das mangas e das goiabas. Esfalfávamo-nos em loucas corridas de arcos de bicicleta e em felinas subidas aos galhos das árvores em busca dos bem escondidos ninhos dos passarinhos ou em mergulhos arriscados no rio.
O rio era o Catumbela, que, muitos quilómetros mais adiante, iria desaguar no Atlântico, junto à cidade do Lobito. No tempo das cheias as suas águas turbulentas e barrentas passavam quase à beira das nossas casas. E era ali, naquela margem, quando o rio ia mais calmo, que as duas famílias se juntavam em refrescantes e agradáveis piqueniques. 

A fotografia terá perto de 60 anos  e  tem – o que é raro em fotos – dois focos: os que olham para a câmara (o meu pai, sentado, o Sr. Corona, o Sr. Mendes, a D. Joselinda, a minha prima Maria e o homem mais alto de quem não me lembro o nome) e os que centram a  atenção na minha tentativa de arranjar um lugarzinho na fotografia e para a posteridade: a minha mãe, a minha irmã (de laçarote) e a Matilde que me ajuda a equilibrar e foi quem me ensinou as primeiras letras (a minha 1ª classe foi doméstica). E há um, de boné, que, embora esteja no centro geométrico da foto, passa ao lado de toda esta acção. Estava longe dali, talvez na serra para onde olhava. Estava, como hoje se diria, “na dele”, o Zeca (irmão mais novo da Matilde e da Isaura) – o meu companheiro e amigo das corridas com arcos de bicicleta. 

Bons velhos tempos!



As fotos da minha vida - I (O Mousinho)





Num chuvoso dia de Abril, nos idos de 1953, depois de uma longa viagem numa  camioneta da companhia Cabanelas, que, ida de Vila-Real, percorrera temerosamente o serpentado de terra batida da serra do Marão e atravessara o rio Douro em direcção à capital do então Império, a minha mãe, nesse mesmo dia ainda, subia a custo, com a minha irmã ao colo e comigo pela mão, as já gastas escadas de portaló do velhinho paquete "Mousinho" que, curiosamente, fazia a sua última viagem de ida-e-volta pelos mares. O destino era a moderna e laboriosa cidade do Lobito onde o meu pai, ali desembarcado um ano antes, já tisnado pelo Sol de África, nos aguardaria. Tinha dois anos e três meses. A minha irmã um ano.

Foi com uma particular emoção que há uns tempos descobri (a "web" tem esta virtualidade) esta foto do Mousinho e um pouco da sua história à qual o destino me ligou. Construído na Alemanha, de bandeira brasileira, recebeu o nome de Corcovado e mais tarde Maria Christina. Veio a ser adquirido, em 1932, pela Companhia Colonial de Navegação, sendo baptizado, e assim acabou os seus dias, com o nome de Mousinho.

Como é de calcular não tenho qualquer memória desta primeira viagem marítima.