Um jantar muito especial


Anteontem, 26 de Fevereiro, reuni num jantar amigos meus, de longa data,  todos da faculdade de Medicina de Luanda, alguns já o eram da infância, mas todos amigos de sempre e para a vida. O motivo último foi uma intrusa visita de um de "bicharoco" que, sem pedir licença, me entrou pela porta adentro,  "instalou-se" e não sairá desta "minha casa" sem uma luta persistente minha e, acima de tudo, da medicina (a nossa, a científica –  dizer isto é uma redundância, porque só há uma medicina que é esta, a da ciência), "guiada" pela mão invisível de um Deus em quem acreditei desde a infância e a quem abandonei durante muitos anos (anos do incontornável materialismo dialéctico) e em quem voltei acreditar (ainda que, por vezes, as dúvidas não deixem de me assaltar, e que espero que Ele mas perdoe). Quem ganhará esta luta?

Foi um belo jantar e como não podia deixar de ser, pedi a palavra para dizer umas poucas que tinha previamente alinhavadas em papel. Não li o papel (esqueci-me dele no carro), mas disse, mais menos que mais, o que estava escrito no  papel. Aqui ficam registadas, agora, as que manuscrevi:

"Meus caros, 

Mais ou menos metade deste grupo costuma reunir-se mais ou menos uma vez por ano num jantar bem comido e melhor bebido em casa de um de nós. Nestes últimos anos tem sido em casa do Zé Graça, se bem se lembram o nosso "mulato de Paris" e que, como podem assegurar-se pela amostra, continua elegantíssimo como um verdadeiro parisiense! Depois do jantar segue-se inevitavelmente uma "lerpada" das antigas que era o que fazíamos quase todas as noites naquela sala do fundo do célebre e bem nosso conhecido Convívio da faculdade, onde, se bem se lembram, eu dormia umas "gandas" sonecas naqueles confortáveis sofás. Lembro-vos que esta nossa tertúlia tem o nome (e chegou a ter estatuto escrito e rigoroso e que o Géo fez "o favor" de o perder) do nosso muito querido, inesquecível e malogrado colega Aníbal Fernandes que sabiamente chamava àquelas  nossas noitadas (e a outras...) "noites sem Deus".

Desta vez e aproveitando uma vinda do Jójó a Lisboa e que sugeriu desde logo um jantar, resolvemos organizar então o primeiro jantar deste ano e dada a minha doença tomámos a iniciativa de o alagar aos restantes colegas e amigos que estão agora, com muita satisfação nossa, aqui presentes.

Quero agradecer a presença de todos e o esforço que fizeram para estarem presentes, em particular, se me permitem, à Miki, que à partida não tinha qualquer disponibilidade para vir do Algarve, mas logo que lhe falei da minha doença se dispôs de imediato a vir. Obrigado Miki. À Julieta que, pela mesma razão, logrou esquivar-se a um "rapto"  que a levava de regresso a Viseu mal acabasse um congresso onde estava. Obrigado Julieta.

Quero, agora, agradecer o apoio que todos, todos, me deram logo que receberam com estupefacção a notícia que me tinha sido diagnosticado um tumor na cabeça: as visitas que me fizeram no IPO, os inúmeros telefonemas, as constantes mensagens. Não imaginam quão importante foi este vosso apoio naquela fase complicada das duas biópsias que tive que fazer, dado que na primeira a amostra se revelou inconclusiva e a segunda correu mal, com hemorragia do próprio tumor, havendo de novo o risco de a amostra se mostrar inconclusiva. E aqui, se me permitem, quero relevar o papel do Borges, o nosso "GT", que na sua tentativa de apressar o diagnóstico da anatomia patológica do arranjou um "qui pro quo" ético com um colega. Mas a verdade é que o diagnóstico veio mais rápido do que veio o primeiro. Obrigado, meu caro Borges.

Eu sabia que teria sempre o vosso apoio, mas foi muito bom sentir no ombro o calor do vosso apoio.

A grande lição* que tiro desta doença, para além da grande prova de amizade que tive, é que na vida, o mais importante é saboreá-la. Saboreá-la com os amigos e com a família. Saboreá-los, e este é o termo exacto, como quem saboreia um bom vinho velho (campo em que o GT se tornou um mestre).

Por isso, e por fim, meus caros, proponho-vos que brindemos à VIDA e à nossa AMIZADE!"




* Não entendo as pessoas que sendo amigas, ou tendo sido amigas de anos e anos, e que uma pequena zanga, ou mesmo grande que fosse, as tenha afastado, perante situações de doença desta natureza não sejam capazes de ultrapassar a desavença e ter um pequeno um gesto  de apoio, qualquer que seja (mesmo por intermédio de um dos muitos amigos em comum). Só revelam e relevam a sua pequenez. 

Uma estadia e duas historietas sem grande história


A cidade era Benguela. De nome inteiro: Cidade de S. Filipe de Benguela. O Hotel era o Tamariz. Ficava mais ou menos a meio da avenida principal – a 5 de Outubro – que desaguava na Praia Morena junto da estátua do fundador da cidade, sem antes ter deixado para trás um dos mais belos e antigos edifícios da cidade – a Escola Comercial, o antigo Cabo Submarino.
Ligeiramente recuado, o Tamariz fazia esquina. Do lado da principal avenida da cidade, com a casa Costa Júnior – uma casa de modas que ostentava com orgulho o título de casa comercial mais antiga da cidade, criada em 1889, segundo rezava uma tabuleta que encimava a frontaria principal do edifício – do outro lado rua, com o austero, sólido, e relativamente recente edifício cor de tijolo, do Banco de Angola.

Antigo, modesto, térreo, todo caiado de branco e bordado por único alpendre, amplo, fresco, que o circundava de um lado a outro, o Tamariz era uma construção antiga e com uma traça marcadamente colonial, provavelmente dos finais do século XIX ou do dealbar do século XX. O chão dos quartos de dormir era de cimento, chamado de branco (em contraposição com o cimento vermelho, mais fino e polido), mas que na realidade era mais acinzentado do que branco. Era um material comum, que se usava na época e em todas as casas, e que possuía a vantagem nada desprezível naquelas paragens africanas de as tornar mais frescas amenizando o tórrido calor. Aquele chão  do Hotel Tamariz já dava evidentes sinais de desgaste. Era irregular e as rachas, provocadas pela erosão tempo e pelas leis mais comezinhas da física, como a da "dilatação dos corpos", espalhavam-se irregularmente como metástases por toda a superfície. A água canalizada, se é que havia, não era uma característica comum a todos os aposentos. No que a mim e aos meus companheiros nos coube, esse sortilégio era substituído, com graça, por uma lavatório esmaltado de branco, já lascado nalguns pontos, assente sobre uma estrutura desenhada em ferro e pintada de um castanho-ferrugem. De um dos lados do bordão caía, pendurada, a tolha de rosto, branca e lavada e que parecia não perder nunca o cheiro ao ferro que a engomara. Ao lado, repousava no chão o jarro, igualmente esmaltado de branco, com o qual, para cumprirmos a higiene matinal, chegávamos a água à bacia superior – a “idade do plástico" não tinha ainda, felizmente, despontado.



Sobre as camas, tombavam do tecto majestosos mosquiteiros que além da utilidade óbvia de nos protegerem das picadas dos mosquitos, emprestavam aos modestos quartos um certo ar de aposento real. Eram bonitos os quartos (debaixo da cama, escondido, estava o inevitável bacio, também de branco esmaltado, que nos precavia das necessidades elementares). Sentíamo-nos uns pequenos reis.


Foram dias de encantamento. De um encantamento indescritível. Para alguns de nós, se não todos, vindos do mato, era a primeira vez que estávamos numa cidade – a histórica e bela capital do distrito! Benguela! E, como se não fora pouco, principescamente hospedados num Hotel. Episódio que, também, nos acontecia pela primeira vez!

Foi uma festa. Embora o motivo da estadia tivesse sido um assunto bem sério.

Tínhamos acabado de concluir, “com uma perna às costas”, como gostava de dizer a nossa professora, o exame da 4.ª classe na Escola Oficial da D. Carmelina, no Cubal. Seguiam-se os inevitáveis exames, esses, sim, já com maior grau de dificuldade, de admissão ao Liceu e à Escola Comercial e Industrial, escolas que ficavam sedeadas exactamente em Benguela, cidade, hoje e desde sempre, sem dúvida, a capital das minhas melhores memórias.
A viagem fora de combóio. Combóio "Mala". Uma viagem inesquecível.



E lá estávamos.
Deslumbrados! Com o mar, que nunca víramos! Com o azul do mar! Com o azul do mar da praia Morena – ponteada de casuarinas. Com o “Porta-Aviões”! Com os prédios altos, com mais de um andar! As ruas de alcatrão, animadas pelas pachorrentas “solexes” e pelas melodias dos pífaros dos sorveteiros, que de balalaica e calções brancos, e em carrinhos a pedal, com feitio de proa de caravela, pintados, não sei se de azul se de verde-mar, embelezavam as ruas cidade e, por um angolar, anunciavam – juro, juro com Deus – os melhores sorvetes do mundo! Os sorvetes Caravela.


Esmagados! Com a grandiosidade do cinema Monumental – o enquadramento do espaço e a arquitectura do Cine- Esplanada-Kalunga só anos mais tarde nos viriam a surpreender – e assombrados, imagine-se, com o conforto e o plano inclinado da Plateia e do Balcão que nos deixavam ver, sem ter de esticar o pescoço, como nos acontecia no raso  e plano cinema do Cubal, as proezas do John Waine, do Gary Cooper ou as pernas da Sofia Loren…

Eu sei lá! Tudo ou quase tudo, era novidade para nós!
E os “reclames” luminosos de néon? Estávamos fascinados com tantas luzes e tantas cores vivas que se acendiam e se apagavam e que davam à cidade um glamour próprio das cidades americanas que víamos no cinema como Los Angeles ou Las Vegas. O mais bonito deles todos era o espectacular espadarte da EPAL, logo no início de quem descia a Rua da Estação, no cruzamento da 5 de Outubro. Ora azul, ora branco, para logo a seguir ficar encarnado e depois voltar ao azul e ao branco, e assim sucessivamente pela noite fora! E a montra iluminada da luminosa e moderna Casa Branca? Era um encanto ver todos aqueles manequins vestidos a preceito. As noivas e os noivos.  Os últimos "gritos" da moda eram por lá, por aquela montra, que passavam! E a velhinha Casa Africana? Mais clássica, ostentava os bons tecidos de fazenda para fatos e bons sapatos para Homem e Senhora.





Nas noites quentes, que eram quase todas, um mar de gente, "em mangas de camisa", fazia picadeiro por aquela avenida iluminada pelos néons. Cavaqueava, espreitava as montras, saboreava sorvetes. Outro mar de gente ia fazer o mesmo picadeiro para a Praia Morena, à volta do "Porta-Aviões" e do paredão da praia. Assim se entretinha a noite, aguardando-se que esta, por volta da meia-noite, já mais fresca, nos convidasse ao regresso às casas.





Estávamos encantados!
O deslumbramento não era fruto apenas da tenra idade que ainda tínhamos, nove ou dez anos, e em que tudo nos maravilhava. Havia razões bem mais fundas.
Éramos, na verdade, gentios! Vínhamos do mato!... das anharas do Cubal! Sítio, naquela época, com meia dúzia de quarteirões de casas térreas, uma estação de caminho-de-ferro, ruas de terra batida, pouco iluminadas, um campo de futebol, dois colégios e um Chefe do Posto. Tudo nos encantava. Tudo nos deslumbrava. Tudo nos maravilhava.

Bom, meus caros, (antes que eu me esqueça. ao que vinha...), vamos às historietas:
Um dia, um daqueles maravilhosos dias, o Antero, Antero Esteves Lima, que era daqueles tipos sempre muito bem comportados, que nunca alinham em nada, incapaz de partir um pires que fosse, quanto mais um prato, muito introvertido e até um pouco estranho (basta dizer que não era do Benfica, nem do Sporting! Não tinha clube!!! Não era estranho um miúdo não torcer por um clube?) lembrou-se de comprar, ali numas das ruas que passavam atrás da Escola Comercial, por dois e quinhentos (meia-cinco), julgo eu, um coco! Um coco inteiro!
Eu e o Tozé Miranda que com ele dividíamos o quarto, quando o vimos de coco na mão, começamos logo a desafiá-lo e a “afiar” os dentes.
– Ó Antero, quando é que partes o coco, pá?
Perguntámos-lhe, pouco crentes na sua anuência, eu e o Tozé
– Não parto nada, pá. É para dar ao meu pai. Ele gosta muito de coco e lá no Cubal não há, pá! Respondeu, o Antero, com aquele ar sério e desconfiado que o caracterizava.
– Epá, deixa-te de fúfias! Parte lá isso, pá! Insistimos.
– Não parto nada. É para dar ao meu pai. Replicava, cioso da prenda que acabara de adquirir.
Adivinhava-se no olhar do Antero que o pai iria apreciar bastante a lembrança do filho. Até nisto o Antero era estranho. Normalmente, naquela época, estas doces lembranças só as tínhamos para com as nossas mães. Desconfiado, guardou-o na mala, com todo o cuidado (não fosse o coco partir-se...) entre as camisas e os calções justos que usava e que lhe realçavam o rabo espetado e foi-se deitar.
Eu e o Tozé, naquele exacto momento, com um simples entreolhar, traçámos, implacavelmente, o destino do coco. Sorrateiros esperámos pela noite e deixámos o nosso amigo Antero adormecer tranquilamente. Desprendemos o mosquiteiro, não fosse algum zeloso anophelis acordá-lo, e, pé ante pé, abeirámo-nos da mala e, enquanto o diabo esfrega um olho, fanámos o ditoso coco!
Nem por um segundo nos ocorreu a enorme mágoa e raiva que iríamos provocar ao Antero.
Com o coco debaixo do braço de um de nós, fomos para o quarto dos meus primos João e Manecas que ficava numa outra ponta da zona dos quartos.  Recordo-me que o Tozé só dizia:
– Temos de o partir só com uma pancada! Caso contrário, a Mariana acorda e estamos lixados! A Mariana era a nossa professora e mãe, exactamente, do Tozé...
E assim foi. Com uma única pancada, seca, o coco desfez-se em vários pedaços. A gula era tanta que nem nos lembrámos de aproveitar previamente, como era costume fazer-se, a aguadilha do coco que se perdeu pelas tais rachas que serpenteavam o chão de cimento.
No dia seguinte, quando o Antero deu conta que o coco com que esperava presentear o pai desaparecera, ficou lívido, branco, mais branco do que a cal que cobria com frescura o Hotel Tamariz. Percebeu logo quem tinha feito tamanha patifaria. Olhou para nós, rangeu os dentes, como costumava fazer, mas não disse nada. Não por desprezo ou qualquer sentimento desse tipo. Mas, percebi, por se sentir impotente. Sempre éramos dois. E dois – eu e o Tozé – sempre disponíveis para uma cena de pancadaria! De raiva incontida, mas incapaz de nos desafiar, fechou o punho e enfiou um murro… na parede do quarto com a mesma força com que nos esmorraria acaso não tivesse o compreensível receio de nos enfrentar...
O Hotel, dizem-me, ruiu. O Antero, não sei dele. Se regressou às origens, deve parar por terras do Fundão. Gostava de o ver, dar-lhe um grande abraço e oferecer-lhe, quanto mais não fosse, um café (de Angola) e um... bolinho de coco!
***
Naquele dia, era a vez de fazermos o exame de Admissão à Escola Comercial e Industrial. Já tínhamos feito o da admissão ao Liceu. Todos contentes, lá fomos, com o sentimento de que a coisa iria correr bem.
Era verdade! Ou porque estávamos bem preparados, ou porque não tínhamos ainda o sentido da responsabilidade, ou por ambas as coisas, embora eu me incline mais para a primeira – a professora era a D. Mariana! – o certo é que nunca pensávamos que as coisas poderiam dar para o torto e acabar numa “raposa”.
À uma boa preparação e à uma certa descontração, juntavam-se os Santinhos que as nossas mães, sempre muito cuidadosas, não se esqueciam de colocar no bolsinho dos nossos casaquinhos – que só usávamos, contrafeitos, nos dias de festa – e que nos davam aquela sensação confortável de que Alguém, algures, zelaria por nós .
Matabichámos, como de costume, no Salão que corria toda a ampla varanda alpendrada e de onde se espreitava o Jardim da Câmara. O chão, tal como o dos quartos, era de cimento, mas encarnado e bem encerado, o que dava ao espaçoso Salão um ar luxuoso. As toalhas que cobriam as mesas, bem como os guardanapos, eram de algodão, branquinhas e com aquele cheiro agradável a lavado e à ferro engomado. Os empregados, pretos, envergando casacos brancos, com botões de latão dourado, mas já esbranquiçados pelo uso, serviam-nos com delicadeza, mas sem aquela humildade a que estávamos habituados nas nossas zonas do interior.
Era uma atmosfera que nos fazia lembrar a do Restaurante do combóio Mala em que tínhamos viajado, com vantagens para este que nos parecia mais selecto e requintado, desde logo pela forma com que éramos chamados para as refeições: um empregado, vestido a rigor (sempre de branco), percorria as carruagens badalando de uma forma cadenciada um pequenino sino! Parece-me ter ainda no ouvido aquela melodia.




matabichados, dirigimo-nos, em fila, mais ou menos indiana, alguns ainda a comer o resto do pão-com-manteiga, para a Escola Comercial que era ali perto. Atravessava-se o colorido jardim debruado de Acácias em flor que havia em frente ao Tamariz e à Câmara Municipal. Percorríamos um pequeno quarteirão de casas antigas e chãs, cruzávamos a Fausto Frazão – uma larga e bela avenida de vivendas, relvados e elegantes palmeiras – e logo deparávamos com a Escola Comercial. Cercava-a um gradeamento em ferro, alto e distinto.

Um pátio amplo, que se prolongava até à umas oficinas onde se faziam os trabalhos manuais, em terra batida e muito solarengo, recatava-a do movimento e de algum bulício daquela longa Avenida 5 de Outubro que terminava junto da estátua do fundador da cidade.
Era um belo edifício. Feito em madeira. As tábuas dispunham-se verticalmente, em jeito de paliçada, tal qual o gradeamento em ferro. O soalho, igualmente em madeira, assentava em pilares de cimento com uma altura que não ultrapassava o metro. Uma escada, já carcomida pelo uso, levava-nos a um varandim que antecedia as salas onde se realizavam as provas de que reuníamos os conhecimentos tidos por necessários para ingressar na Escola Comercial.
Antes de a subirmos, a D. Mariana dava-nos os últimos conselhos.
– Não se esqueçam de fazer o rascunho! Recomendava. Leiam bem as perguntas! Acrescentava.
O primeiro Ponto era o de Português e, como era da praxe, terminava com a sacramental redacção. Hoje, o ponto, recebe o nome de Teste (influência americana) e a redacção o nome pomposo de Composição. Mas como se tratava de redigir, o nome que se lhe dava, e bem, era de Redacção. E a dita, naquele ano, era sobre o cão ou um outro animal doméstico à nossa escolha. Já não sei qual foi o quadrúpede que escolhi, mas para esta história, também, pouco importa. Feito o rascunho, passado a limpo, estava o Ponto terminado. Não era assim tão fácil... Nisto passava-se, julgo, hora e meia.
Cá fora, no pátio, à sombra de um tamarineiro, creio eu, que lá havia, esperava-nos a D. Mariana. À medida que íamos saindo, auscultava as nossas impressões sobre o Ponto e recolhia os respectivos rascunhos, com os quais haveria, mais tarde, já no hotel, de confirmar, ou não, as nossas impressões sempre optimistas.
Havia uns, como eu, que à inevitável pergunta “como é que correu”, se resguardavam num equidistante e pouco comprometedor “mais ou menos...”.
O último a entregar o rascunho foi o Aníbal, o malogrado Aníbal Fernando Nunes Fernandes, meu querido amigo, filho do Noventa, alfacinha de gema, como gostava de dizer, natural de Alcântara e adepto orgulhoso do seu Atlético Clube de Portugal, de quem a D. Mariana esperava uma bela Redacção – redigia muito bem e, reconhecido por todos, era dotado de uma fértil imaginação.
– Então, Aníbal, correu bem? Qual foi o animal que escolheste?
Debaixo dos óculos que usava desde que o conhecemos – o que o tornava singular e até invejado – o Aníbal, com aqueles olhos bem vivos, sorriu, seguro de que tinha feito melhor que os outros e, acima de tudo, diferente, respondeu célere e convicto da façanha que cometera.

              – O Infante D. Henrique!

A D. Mariana empalideceu. Estávamos a ver que lhe dava um fanico, coisa a que era muito atreita. Todos nos lembrámos de uma vez, quando chegava a roupa ao pêlo ao Tozé, seu filho, lhe acontecera o mesmo.

– O Infante D. Henrique?!!! Perguntava incrédula a D. Mariana.

– O Infante D. Henrique?!!! Insistia incrédula a D. Mariana

             – Mas o Infante é um animal?! Gritava-lhe a D. Mariana

 O Aníbal perdeu o sorriso e, com ele, a convicção de que fizera uma brilhante redação, e gaguejando… balbuciava:

– Lá dizia para se escolher o cão ou um outro animal qualquer. Eu escolhi o Infante D. Henrique...

– Mas o Infante é um animal!? Retorquia a D. Mariana.
– Tu! Tu é que és um animal! Vociferava a D. Mariana
             – Mas a Sôssôra não diz que os Homens são também animais?! Lá não dizia...

             –  Mas dizia doméstico! Interrompia a D. Mariana furiosa.
– E nós não somos também animais domésticos?! Exclamava o Aníbal.
– Não, não somos! Minha abécula! Bom, depois no Hotel conversamos. Rematou a D. Mariana.
            O Aníbal levou a mão direita à cabeça, com o seu jeito, coçou-a, antevendo o cenário que o esperava.
            Mas não. A D. Mariana ao ler o rascunho logo constatou que o Aníbal, embora fugindo claramente... ao tema, fizera uma belíssima redacção. Estava muito bem escrita e tinha a certeza que o Júri, sábio e ponderado, como é suposto serem os júris, não iria deixar de valorizar a qualidade da redacção, esquecendo que o Aníbal, sem querer, chamara nomes ao mais célebre e ilustre membro da Ínclita Geração.           

            A qualidade do trabalho da D. Mariana, à mistura com algumas orelhas de burro e uns bofetões (só se perdiam aqueles que caíam no chão...diziam os nossos velhotes) ficou sobejamente confirmada. Muitos de nós dispensámos das orais e todos passaram para o 1.º ano do Liceu, ou melhor... do Colégio Eça de Queiroz, para onde voltámos! E onde outras histórias para contar se sucederam!

Músicas do meu tempo - Amapola



Amapola é uma canção italiana composta em 1941 pelo maestro Lacalle e que durante os anos de sucesso foi interpretada, como acontece com as grandes canções, por vários dos mais importantes cantores, quer populares, quer clássicos, como nesta versão do grande tenor Alfred Kraus de 1959. Anos mais tarde, numa versão orquestral de maestro Ennio Morricone, veio a fazer parte da banda sonora de um dos melhores filmes de sempre, "Era uma vez na América", e, curiosamente, a ilustrar e enriquecer uma das mais belas cenas do filme, quando o jovem  David Aaronson espreita apaixonadamente a  Deborah a dançar, precisamente, este tema, em pontas, num celeiro, no meio de sacos serapilheira cheios de farinha!


Lembro-me, com seis ou sete anos, de cantarolar repetidamente  o refrão da canção: "Amapola, lindisima amapola/No seas tan ingrate y ámame". Lembro-me das ruas por onde  a cantarolava. Só muitos anos mais tarde é que "descobri" que uma amapola  em português é uma papoila... (Para um Benfiquista tem um espacial significado...)