A cidade era Benguela. De nome
inteiro: Cidade de S. Filipe de Benguela. O Hotel era o Tamariz. Ficava mais ou
menos a meio da avenida principal – a 5 de Outubro – que desaguava na Praia
Morena junto da estátua do fundador da cidade, sem antes ter deixado para trás um
dos mais belos e antigos edifícios da cidade – a Escola Comercial, o antigo
Cabo Submarino.
Ligeiramente recuado, o Tamariz fazia esquina.
Do lado da principal avenida da cidade, com a casa Costa Júnior – uma casa de modas
que ostentava com orgulho o título de casa comercial mais antiga da cidade,
criada em 1889, segundo rezava uma tabuleta que encimava a frontaria principal do edifício – do outro lado rua, com o austero, sólido, e relativamente
recente edifício cor de tijolo, do Banco de Angola.
Antigo, modesto, térreo, todo
caiado de branco e bordado por único alpendre, amplo, fresco, que o circundava
de um lado a outro, o Tamariz era uma construção antiga e com uma traça
marcadamente colonial, provavelmente dos finais do século XIX ou do dealbar do século XX. O chão dos quartos
de dormir era de cimento, chamado de branco (em contraposição com o cimento
vermelho, mais fino e polido), mas que na realidade era mais acinzentado do que branco. Era um material comum, que se usava na época e em todas as
casas, e que possuía a vantagem nada desprezível naquelas paragens africanas de as tornar mais frescas amenizando o tórrido calor. Aquele chão do Hotel Tamariz já dava evidentes sinais de desgaste. Era
irregular e as rachas, provocadas pela erosão tempo e pelas leis mais comezinhas da
física, como a da "dilatação dos corpos", espalhavam-se irregularmente como metástases
por toda a superfície. A água canalizada, se é que havia, não era uma
característica comum a todos os aposentos. No que a mim e aos meus companheiros
nos coube, esse sortilégio era substituído, com graça, por uma lavatório esmaltado
de branco, já lascado nalguns pontos, assente sobre uma estrutura desenhada em
ferro e pintada de um castanho-ferrugem. De um dos lados do bordão caía,
pendurada, a tolha de rosto, branca e lavada e que parecia não perder nunca o cheiro
ao ferro que a engomara. Ao lado, repousava no chão o jarro, igualmente esmaltado de
branco, com o qual, para cumprirmos a higiene matinal, chegávamos a água à bacia superior – a “idade do plástico" não tinha
ainda, felizmente, despontado.
Sobre as camas, tombavam do
tecto majestosos mosquiteiros que além da utilidade óbvia de nos protegerem das
picadas dos mosquitos, emprestavam aos modestos quartos um certo ar de aposento
real. Eram bonitos os quartos (debaixo da cama, escondido, estava o inevitável
bacio, também de branco esmaltado, que nos precavia das necessidades
elementares). Sentíamo-nos uns pequenos reis.
Foram dias de encantamento. De
um encantamento indescritível. Para alguns de nós, se não todos, vindos do mato, era a primeira vez que estávamos numa
cidade – a histórica e bela capital do distrito! Benguela! E, como se não fora pouco, principescamente
hospedados num Hotel. Episódio que, também, nos acontecia pela primeira vez!
Foi uma festa. Embora o motivo
da estadia tivesse sido um assunto bem sério.
Tínhamos acabado de concluir,
“com uma perna às costas”, como gostava de dizer a nossa professora, o exame da 4.ª classe na Escola Oficial da D.
Carmelina, no Cubal. Seguiam-se os inevitáveis exames, esses, sim, já com maior
grau de dificuldade, de admissão ao Liceu e à Escola Comercial e Industrial, escolas que
ficavam sedeadas exactamente em Benguela, cidade, hoje e desde sempre, sem dúvida, a
capital das minhas melhores memórias.
A viagem fora de combóio.
Combóio "Mala". Uma viagem inesquecível.
E lá estávamos.
Deslumbrados! Com o mar, que
nunca víramos! Com o azul do mar! Com o azul do mar da praia Morena – ponteada
de casuarinas. Com o “Porta-Aviões”! Com os prédios altos, com mais de um andar! As
ruas de alcatrão, animadas pelas pachorrentas “solexes” e pelas melodias dos
pífaros dos sorveteiros, que de
balalaica e calções brancos, e em carrinhos a pedal, com feitio de proa de
caravela, pintados, não sei se de azul se de verde-mar, embelezavam as ruas
cidade e, por um angolar, anunciavam – juro, juro com Deus – os melhores sorvetes do mundo! Os sorvetes Caravela.
Esmagados! Com a grandiosidade do cinema Monumental – o enquadramento do espaço e a arquitectura do Cine-
Esplanada-Kalunga só anos mais tarde nos viriam a surpreender – e assombrados,
imagine-se, com o conforto e o plano inclinado da Plateia e do Balcão que nos
deixavam ver, sem ter de esticar o pescoço, como nos acontecia no raso e plano cinema do Cubal, as proezas do John
Waine, do Gary Cooper ou as pernas da Sofia Loren…
Eu sei lá! Tudo ou quase tudo, era novidade para
nós!
E os “reclames” luminosos de
néon? Estávamos fascinados com tantas luzes e tantas cores vivas que se
acendiam e se apagavam e que davam à cidade um glamour próprio das cidades americanas que víamos no cinema como
Los Angeles ou Las Vegas. O mais bonito deles todos era o espectacular espadarte da EPAL,
logo no início de quem descia a Rua da Estação, no cruzamento da 5 de Outubro.
Ora azul, ora branco, para logo a seguir ficar encarnado e depois voltar ao
azul e ao branco, e assim sucessivamente pela noite fora! E a montra iluminada da
luminosa e moderna Casa Branca? Era um encanto ver todos aqueles manequins vestidos a preceito. As noivas e os noivos. Os últimos "gritos" da moda eram por lá, por aquela montra, que passavam! E a velhinha Casa Africana? Mais clássica, ostentava os bons tecidos de fazenda para fatos e bons sapatos para Homem e Senhora.
Nas noites quentes, que eram quase todas, um mar de gente, "em mangas de camisa", fazia picadeiro por aquela avenida iluminada pelos néons. Cavaqueava, espreitava as montras, saboreava sorvetes. Outro mar de gente ia fazer o mesmo picadeiro para a Praia Morena, à volta do "Porta-Aviões" e do paredão da praia. Assim se entretinha a noite, aguardando-se que esta, por volta da meia-noite, já mais fresca, nos convidasse ao regresso às casas.
Estávamos encantados!
O deslumbramento não era fruto apenas
da tenra idade que ainda tínhamos, nove ou dez anos, e em que tudo nos maravilhava.
Havia razões bem mais fundas.
Éramos, na verdade, gentios! Vínhamos do mato!... das anharas do Cubal! Sítio,
naquela época, com meia dúzia de quarteirões de casas térreas, uma estação de caminho-de-ferro,
ruas de terra batida, pouco iluminadas, um campo de futebol, dois colégios e um Chefe do Posto. Tudo nos encantava. Tudo nos deslumbrava. Tudo nos maravilhava.
Bom, meus caros, (antes que eu me esqueça. ao que vinha...), vamos às historietas:
Um dia, um daqueles
maravilhosos dias, o Antero, Antero Esteves Lima, que era daqueles tipos sempre
muito bem comportados, que nunca alinham em nada, incapaz de partir um pires
que fosse, quanto mais um prato, muito introvertido e até um pouco estranho (basta
dizer que não era do Benfica, nem do Sporting! Não tinha clube!!! Não era estranho
um miúdo não torcer por um clube?) lembrou-se de comprar, ali numas das ruas que
passavam atrás da Escola Comercial, por dois e quinhentos (meia-cinco), julgo eu, um coco! Um coco inteiro!
Eu e o Tozé Miranda que com
ele dividíamos o quarto, quando o vimos de coco na mão, começamos logo a desafiá-lo e a “afiar” os dentes.
– Ó Antero,
quando é que partes o coco, pá?
Perguntámos-lhe, pouco crentes na sua anuência, eu e o Tozé
– Não parto nada, pá. É para
dar ao meu pai. Ele gosta muito de coco e lá no Cubal não há, pá! Respondeu, o
Antero, com aquele ar sério e desconfiado que o caracterizava.
– Epá, deixa-te de fúfias! Parte lá isso, pá! Insistimos.
– Não parto nada. É para dar
ao meu pai. Replicava, cioso da prenda que acabara de adquirir.
Adivinhava-se no olhar do
Antero que o pai iria apreciar bastante a lembrança do filho. Até nisto o
Antero era estranho. Normalmente, naquela época, estas doces lembranças só as
tínhamos para com as nossas mães. Desconfiado, guardou-o na mala, com todo o
cuidado (não fosse o coco partir-se...) entre as camisas e os calções justos
que usava e que lhe realçavam o rabo espetado e foi-se deitar.
Eu e o Tozé, naquele exacto
momento, com um simples entreolhar, traçámos, implacavelmente, o destino do
coco. Sorrateiros esperámos pela noite e deixámos
o nosso amigo Antero adormecer tranquilamente. Desprendemos o mosquiteiro, não
fosse algum zeloso anophelis acordá-lo, e, pé ante pé, abeirámo-nos da mala e,
enquanto o diabo esfrega um olho, fanámos o ditoso coco!
Nem por um segundo nos
ocorreu a enorme mágoa e raiva que iríamos provocar ao Antero.
Com o coco debaixo do braço
de um de nós, fomos para o quarto dos meus primos João e Manecas que ficava
numa outra ponta da zona dos quartos. Recordo-me
que o Tozé só dizia:
– Temos de o partir só com
uma pancada! Caso contrário, a Mariana acorda e estamos lixados! A Mariana era
a nossa professora e mãe, exactamente, do Tozé...
E assim foi. Com uma única
pancada, seca, o coco desfez-se em
vários pedaços. A gula era tanta que nem nos lembrámos de aproveitar previamente,
como era costume fazer-se, a aguadilha do coco que se perdeu pelas tais rachas que
serpenteavam o chão de cimento.
No dia seguinte, quando o
Antero deu conta que o coco com que esperava presentear o pai desaparecera,
ficou lívido, branco, mais branco do que a cal que cobria com frescura o Hotel Tamariz.
Percebeu logo quem tinha feito tamanha patifaria. Olhou para nós, rangeu os
dentes, como costumava fazer, mas não disse nada. Não por desprezo ou qualquer
sentimento desse tipo. Mas, percebi, por se sentir impotente. Sempre éramos
dois. E dois – eu e o Tozé – sempre disponíveis para uma cena de pancadaria! De
raiva incontida, mas incapaz de nos desafiar, fechou o punho e enfiou um murro… na parede do quarto com a mesma força com que nos esmorraria acaso não tivesse o compreensível receio de nos enfrentar...
O Hotel, dizem-me, ruiu. O
Antero, não sei dele. Se regressou às origens, deve parar por terras do Fundão.
Gostava de o ver, dar-lhe um grande abraço e oferecer-lhe, quanto mais não
fosse, um café (de Angola) e um... bolinho de coco!
***
Naquele dia, era a vez de
fazermos o exame de Admissão à Escola Comercial e Industrial. Já tínhamos feito
o da admissão ao Liceu. Todos contentes, lá fomos, com o sentimento de que a
coisa iria correr bem.
Era verdade! Ou porque
estávamos bem preparados, ou porque não tínhamos ainda o sentido da
responsabilidade, ou por ambas as coisas, embora eu me incline mais para a
primeira – a professora era a D. Mariana! – o certo é que nunca pensávamos que
as coisas poderiam dar para o torto e acabar numa “raposa”.
À uma boa preparação e à uma
certa descontração, juntavam-se os Santinhos que as nossas mães, sempre muito
cuidadosas, não se esqueciam de colocar no bolsinho dos nossos casaquinhos –
que só usávamos, contrafeitos, nos dias de festa – e que nos davam aquela
sensação confortável de que Alguém, algures, zelaria por nós .
Matabichámos, como de costume, no Salão que corria toda a ampla varanda alpendrada
e de onde se espreitava o Jardim da Câmara. O chão, tal como o dos quartos, era
de cimento, mas encarnado e bem encerado, o que dava ao espaçoso Salão um ar luxuoso.
As toalhas que cobriam as mesas, bem como os guardanapos, eram de algodão,
branquinhas e com aquele cheiro agradável a lavado e à ferro engomado. Os
empregados, pretos, envergando casacos brancos, com botões de latão dourado, mas
já esbranquiçados pelo uso, serviam-nos com delicadeza, mas sem aquela humildade
a que estávamos habituados nas nossas zonas do interior.
Era uma atmosfera que nos fazia
lembrar a do Restaurante do combóio Mala em que tínhamos viajado, com vantagens
para este que nos parecia mais selecto
e requintado, desde logo pela forma com que éramos chamados para as refeições: um
empregado, vestido a rigor (sempre de branco), percorria as carruagens
badalando de uma forma cadenciada um pequenino sino! Parece-me ter ainda no
ouvido aquela melodia.
Já
matabichados, dirigimo-nos, em fila, mais ou menos indiana,
alguns ainda a comer o resto do pão-com-manteiga, para a Escola Comercial que
era ali perto. Atravessava-se o colorido jardim debruado de Acácias em flor que
havia em frente ao Tamariz e à Câmara Municipal. Percorríamos um pequeno
quarteirão de casas antigas e chãs, cruzávamos a Fausto Frazão – uma larga e
bela avenida de vivendas, relvados e elegantes palmeiras – e logo deparávamos com
a Escola Comercial. Cercava-a um gradeamento em ferro, alto e distinto.
Um pátio amplo, que se
prolongava até à umas oficinas onde se faziam os trabalhos manuais, em terra
batida e muito solarengo, recatava-a do movimento e de algum bulício daquela
longa Avenida 5 de Outubro que terminava junto da estátua do fundador da
cidade.
Era um belo edifício. Feito
em madeira. As tábuas dispunham-se verticalmente, em jeito de paliçada, tal
qual o gradeamento em ferro. O soalho, igualmente em madeira, assentava em
pilares de cimento com uma altura que não ultrapassava o metro. Uma escada, já
carcomida pelo uso, levava-nos a um varandim que antecedia as salas onde se realizavam as provas de que reuníamos os conhecimentos tidos por
necessários para ingressar na Escola Comercial.
Antes de a subirmos, a D.
Mariana dava-nos os últimos conselhos.
– Não se esqueçam de fazer o
rascunho! Recomendava. Leiam bem as perguntas! Acrescentava.
O primeiro Ponto era o de
Português e, como era da praxe, terminava com a sacramental redacção. Hoje, o
ponto, recebe o nome de Teste (influência americana) e a redacção o nome
pomposo de Composição. Mas como se tratava de redigir, o nome que se lhe dava,
e bem, era de Redacção. E a dita, naquele ano, era sobre o cão ou um outro
animal doméstico à nossa escolha. Já não sei qual foi o quadrúpede que escolhi,
mas para esta história, também, pouco importa. Feito o rascunho, passado a
limpo, estava o Ponto terminado. Não era assim tão fácil... Nisto passava-se,
julgo, hora e meia.
Cá fora, no pátio, à sombra
de um tamarineiro, creio eu, que lá havia, esperava-nos a D. Mariana. À medida
que íamos saindo, auscultava as nossas impressões sobre o Ponto e recolhia os
respectivos rascunhos, com os quais haveria, mais tarde, já no hotel, de
confirmar, ou não, as nossas impressões sempre optimistas.
Havia uns, como eu, que à
inevitável pergunta “como é que correu”, se resguardavam num equidistante e
pouco comprometedor “mais ou menos...”.
O último a entregar o
rascunho foi o Aníbal, o malogrado Aníbal Fernando Nunes Fernandes, meu querido
amigo, filho do Noventa, alfacinha de
gema, como gostava de dizer, natural de Alcântara e adepto orgulhoso do seu
Atlético Clube de Portugal, de quem a D. Mariana esperava uma bela Redacção –
redigia muito bem e, reconhecido por todos, era dotado de uma fértil
imaginação.
– Então, Aníbal, correu bem?
Qual foi o animal que escolheste?
Debaixo dos óculos que usava desde que o
conhecemos – o que o tornava singular e até invejado – o Aníbal, com aqueles
olhos bem vivos, sorriu, seguro de que tinha feito melhor que os outros e,
acima de tudo, diferente, respondeu célere e convicto da façanha que cometera.
– O Infante D. Henrique!
A D. Mariana empalideceu.
Estávamos a ver que lhe dava um fanico,
coisa a que era muito atreita. Todos nos lembrámos de uma vez, quando chegava a roupa ao pêlo ao Tozé, seu filho, lhe
acontecera o mesmo.
– O Infante D. Henrique?!!!
Perguntava incrédula a D. Mariana.
– O Infante D. Henrique?!!! Insistia
incrédula a D. Mariana
– Mas o Infante é um
animal?! Gritava-lhe a D. Mariana
O Aníbal perdeu o sorriso e, com ele, a convicção de que fizera uma brilhante redação, e
gaguejando… balbuciava:
– Lá dizia para se escolher
o cão ou um outro animal qualquer. Eu escolhi o Infante D. Henrique...
– Mas o Infante é um animal!?
Retorquia a D. Mariana.
– Tu! Tu é que és um animal! Vociferava a D. Mariana
– Mas a Sôssôra não diz que os
Homens são também animais?! Lá não dizia...
– Mas dizia doméstico!
Interrompia a D. Mariana furiosa.
– E nós não somos também animais
domésticos?! Exclamava o Aníbal.
– Não, não somos! Minha abécula! Bom, depois no Hotel conversamos.
Rematou a D. Mariana.
O
Aníbal levou a mão direita à cabeça, com o seu jeito, coçou-a, antevendo o cenário que o
esperava.
Mas
não. A D. Mariana ao ler o rascunho logo constatou que o Aníbal, embora fugindo
claramente... ao tema, fizera uma belíssima redacção. Estava muito bem escrita
e tinha a certeza que o Júri, sábio e ponderado, como é suposto serem os júris,
não iria deixar de valorizar a qualidade da redacção, esquecendo que o Aníbal,
sem querer, chamara nomes ao mais célebre e ilustre membro da Ínclita Geração.
A
qualidade do trabalho da D. Mariana, à mistura com algumas orelhas de burro e uns bofetões (só se perdiam aqueles que caíam no chão...diziam os nossos
velhotes) ficou sobejamente confirmada. Muitos de nós dispensámos das orais e
todos passaram para o 1.º ano do Liceu,
ou melhor... do Colégio Eça de Queiroz, para onde voltámos! E onde outras
histórias para contar se sucederam!