Não sei bem porquê (estou a mentir, sei bem os motivos...), nestes últimos dias, tenho-me lembrado de uma comovente história de amor contada pela pena do escritor cuja escrita actualmente mais me fascina.  A paixão começou assim:



"Esta era uma das coisas que fazia desde pequeno, que tinha descoberto por acaso e que imaginava ser eu a única pessoa a fazer no mundo. Fechava os olhos e via. Via o que se vê com os olhos fechados. Via o negro dentro de mim e via os pontos de luz que o quebram, as vagas de luz, as figuras abstractas de luz, os vultos de luz, as sombras de luz dentro da luz do negro dentro de mim. Isto é o que se vê quando fechamos os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que a habitam. E não se conseguem olhar fixamente nem para o negro, nem para a luz. Os pontos ou as linhas ou as figuras de luz fogem da atenção. O negro é tão absoluto, tão profundo e tão infinito que o olhar avança por ele sem encontrar um lugar onde possa deter-se. Mas, naquela noite, comecei a distinguir algo dentro desse negro. Lentamente, devagar, um a um, os pequenos pontos luminosos deslizaram no negro e, pela primeira vez, vi que tinham uma direcção. Lentamente aproximaram-se um dos outros numa harmonia que existia ainda sem lógica. Depois, lentamente, tudo muito lentamente os pontos de luz formaram cordões de luz sobre o negro que eram linhas de luz sobre o negro. Depois, começou a surgir cada contorno de um rosto e de um corpo. Muito lentamene, muito devagar, um a um, começaram a surgir os traços do rosto mais lindo que alguma vez tinha visto e do corpo mais lindo que alguma vez tinha visto. Era um corpo de luz sobre o negro. Era uma mulher. Olhei-a até ser completa. Olhei-a até ter a certeza de que nunca iria ver uma mulher mais bonita na vida. Deslumbrante. E, mesmo depois dessa certeza, continuei a olhá-la. Ela olhava-me também. Tímida, sem saber talvez se podia sorrir. E a pele que não podia tocar era a pele de uma noiva pura que apetece beijar e não se pode, a pele impossível de uma noiva a caminhar para o altar com flores nos cabelos. As mãos eram toada a ternura e toda a elegância do mundo se houvesse mundo suficiente para tanta ternura e tanta elegância. Tinha um vestido leve, que era um pano branco a moldar-lhe o corpo. Tinha uns lábios finos. Tinha uns cabelos longos de mulher. Quando abri os olhos e me levantei da cama, tinha aquele milagre dentro de mim. Descalço, despenteado, em pijama, atravessei a casa. Sentei-me à escrivaninha. Com a mão a tremer, seguro na esferográfica. E, assim que pousei a ponta da esferográfica sobre a folha do papel, a mão parou de tremer. Comecei a escrever as primeira palavras daquele que, imaginava com uma certeza infinita, iria ser o meu melhor livro. Tinha vinte e cinco anos, seis meses e dezanove dias.

Escrevi até ao princípio da manha aparecer na janela. (.......................). O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando, me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de escrever e, de cada vez que repetia o exercício, conseguia escrever duas palavras ou, numa máximo uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama, adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
"


O livro que o personagem julagava que iria ser o seu melhor livro acabou por não passar de folhas (que o acompanharam durante toda a sua vida) porque era tão sublime a paixão e tão sublime o cíume que o personagem não conseguia, sequer, suportar a ideia que alguém mais o  pudesse ler. Nem, tão pouco, o editor... Porque quem o lesse, tal era a mestria da escrita, era como se pudesse tocar e usufruir do corpo objecto daquela paixão! E essa ideia era-lhe insurportável.

Uma Casa na Escuridão
José Luis Peixoto
Ed. Temas e Debates

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