Músicas do meu tempo - Andorinha Preta


Nat King Cole e o trio brasileiro Irikitan

Nat King Cole tinha, em minha opinião, uma das melhores vozes de sempre. Chamavam-lhe a "garganta de prata". Veio, curiosamente, a morrer com um câncro na garganta em 1965. Tinha uma dicção irreprensível e um timbre único. Cantava em inglês, naturalmente, mas celebrizou-se igualmente a cantar em espanhol (e em portugês) com um sotaque muito doce e peculiar. Quem não se lembra dos irmortais temas românticos "Quizás, Quizás, Quizás" ou "Ansiedad" , ou ainda, em inglês, o inesquecível "Unforgettable", ou "Mona Lisa".
 
Este tema brasileiro é interessante: tem um refrão que é repetido sincopadamente pelo trio até à exaustão (dezasseis vezes): "eu tinha uma andorinha que me fugiu da gaiola", e o pequeno corpo da letra é admiravelmente cantado em inglês pelo Cole:

Fly my Brazilian love bird / Fly to the one I love / Please won't you tell her that I'm the one who cares / Please bring to me her answer

Que é uma tradução bem livre do poema original

Vai, andorinha preta,
De asa arrepiada,
Vai, vai dormir teu sono andorinha, ô
Que é de madrugada.

Ai tanta coisa não devia se fazer
Tantas vezes as gente chora
Por deixar seu bem querer
Minha cabocla foi-se embora do sertão
Fez que nem as andorinhas
Foi buscar outro verão.


Ora, oiçam-no.






Grandes canções


“Non, je ne regrette rien”. A mais popular das canções de Edit Piaff. Cantava-a com uma força inigualável, vinda das entranhas. Quem a ouvia ao vivo ou em gira-discos, ou quem hoje a ouve em vinil (perdão, em CD – mas a verdade é que tenho uma certa aversão em usar siglas e, além do mais, o termo vinil é, hoje, mais "literário" do que o uso daquela sigla…) com toda aquela força dramática, repetindo “não, não lamento nada”, facilmente será levado a crer que Piaff, esse enorme vulto da canção francesa, na realidade, não lastimava nada do que fora a sua vida: Ni le bien, qu'on m'a fait/Ni le mal, tout ça m'est bien égal! Nem o bom que desfrutou, nem o mau por que passou. Terá sido mesmo assim? Não terá Edit Piaff lamentado nada, mesmo nada, do que fez na vida? Não estou certo disso. Quem cantava com aquela amargura, quase raiva, decerto muito penou e algumas penas gostaria de ter evitado. Hoje, é comum ouvir-se, desde políticos ou personalidades relevantes ao mais comum dos mortais, que não lamentam nenhuma das suas opções de vida ou nenhum dos erros que cometeram. Que se voltassem atrás, repetiriam tudo o que fizeram. Soa bem. Nem sentimentos de culpa, nem arrependimentos, nem, tão pouco, interrogações. Estão todos na onda. Como os invejo.
“Erros meus, má fortuna...”

Fotos da minha vida (o que fiz as estes meus cabelos?)


No caminho entre Benguela e a Catumbela, no quilómetro vinte sete, contados a partir do Lobito, ficava a praia do... Vinte Sete. Tinha um pequeno pavilhão coberto, mas aberto, que servira de suporte a uma antiga pescaria. Creio que, como praia, só era frequentada pela minha família e uns vizinhos nossos da rua Monsenhor Kelling em Benguela. Nunca vi lá ninguem. Aproveitávamo-nos da cobertura para a minha mãe (Dúlia) cozinhar uma bela caldeirada de cabrito ou de peixe com muito jindungo e  para estender o restante farnel que levávamos para o dia de praia. Antes da caldeirada esgotávamos as energias em mergulhos naquelas águas quentes do Atlântico ou na apanha fácil das "quitetas" (cadelinhas). Depois do repasto seguia-se a inevitável sesta que o abrasador calor das Áfricas aconselhava e, mais à tardinha, de novo os mergulhos e braçadas pela praia, evitando as alforrecas que por ali, e àquela hora, davam à costa. E assim se passava um Domingo. 

Como se pode constatar pela foto, era fartos os meu cabelos. Orgulhava-me deles. Gostava das ondas largas que eles faziam. Podia andar todo sujo, ou até mal vestido, mas os meus cabelos andavam sempre penteados. Tratava-os com desvelo. O pente, sempre no bolso detrás dos calções, prontinho e solícito, a ser usado. Nesta época, não eram ainda os cabelos compridos, quase sobre os ombros, dos Beatles que marcavam a moda. Imperavam ainda os cabelos ao jeito do Elvis Preley, penteados para trás, com "poupa"  e brilhantina.

Tal era a minha vaidade no cabelo que um dia, dois anos depois, se tanto, desta foto, o meu pai, de feitio austero e severo, para me castigar de uma grave malandrice, no entender dele, que eu fizera, não encontrou melhor forma de me castigar do que, para além da inevitável tareia, mandar-me ao Zé Maria, barbeiro, rapar aqueles meus cabelos à maquina zero! Foi um golpe duríssimo! O meu cabelo nunca mais foi o mesmo. Renasceu, claro, mas com ondas mais curtas e encrespadas. Quando, finalmente, irromperam, gloriosos, os cabelos compridos, à Beatles, o jeito encrespado que os meus, entretanto,  ganharam com a "tosquia", já não me permitiam deixá-los crescer. Doeu-me. Muito.


Quando o Benfica ganha ao Sporting até as gotas da chuva brilham como brilham os raios de Sol! Há noites perfeitas e luminosas!

Luminosidades


Quando o Benfica ganha e o Sporting perde (ou o Porto, ou, melhor ainda, os dois juntos...) até os raios de luz que inundam a cidade ganham uma outra luminosidade. Uma outra luz.

Um jantar muito especial


Anteontem, 26 de Fevereiro, reuni num jantar amigos meus, de longa data,  todos da faculdade de Medicina de Luanda, alguns já o eram da infância, mas todos amigos de sempre e para a vida. O motivo último foi uma intrusa visita de um de "bicharoco" que, sem pedir licença, me entrou pela porta adentro,  "instalou-se" e não sairá desta "minha casa" sem uma luta persistente minha e, acima de tudo, da medicina (a nossa, a científica –  dizer isto é uma redundância, porque só há uma medicina que é esta, a da ciência), "guiada" pela mão invisível de um Deus em quem acreditei desde a infância e a quem abandonei durante muitos anos (anos do incontornável materialismo dialéctico) e em quem voltei acreditar (ainda que, por vezes, as dúvidas não deixem de me assaltar, e que espero que Ele mas perdoe). Quem ganhará esta luta?

Foi um belo jantar e como não podia deixar de ser, pedi a palavra para dizer umas poucas que tinha previamente alinhavadas em papel. Não li o papel (esqueci-me dele no carro), mas disse, mais menos que mais, o que estava escrito no  papel. Aqui ficam registadas, agora, as que manuscrevi:

"Meus caros, 

Mais ou menos metade deste grupo costuma reunir-se mais ou menos uma vez por ano num jantar bem comido e melhor bebido em casa de um de nós. Nestes últimos anos tem sido em casa do Zé Graça, se bem se lembram o nosso "mulato de Paris" e que, como podem assegurar-se pela amostra, continua elegantíssimo como um verdadeiro parisiense! Depois do jantar segue-se inevitavelmente uma "lerpada" das antigas que era o que fazíamos quase todas as noites naquela sala do fundo do célebre e bem nosso conhecido Convívio da faculdade, onde, se bem se lembram, eu dormia umas "gandas" sonecas naqueles confortáveis sofás. Lembro-vos que esta nossa tertúlia tem o nome (e chegou a ter estatuto escrito e rigoroso e que o Géo fez "o favor" de o perder) do nosso muito querido, inesquecível e malogrado colega Aníbal Fernandes que sabiamente chamava àquelas  nossas noitadas (e a outras...) "noites sem Deus".

Desta vez e aproveitando uma vinda do Jójó a Lisboa e que sugeriu desde logo um jantar, resolvemos organizar então o primeiro jantar deste ano e dada a minha doença tomámos a iniciativa de o alagar aos restantes colegas e amigos que estão agora, com muita satisfação nossa, aqui presentes.

Quero agradecer a presença de todos e o esforço que fizeram para estarem presentes, em particular, se me permitem, à Miki, que à partida não tinha qualquer disponibilidade para vir do Algarve, mas logo que lhe falei da minha doença se dispôs de imediato a vir. Obrigado Miki. À Julieta que, pela mesma razão, logrou esquivar-se a um "rapto"  que a levava de regresso a Viseu mal acabasse um congresso onde estava. Obrigado Julieta.

Quero, agora, agradecer o apoio que todos, todos, me deram logo que receberam com estupefacção a notícia que me tinha sido diagnosticado um tumor na cabeça: as visitas que me fizeram no IPO, os inúmeros telefonemas, as constantes mensagens. Não imaginam quão importante foi este vosso apoio naquela fase complicada das duas biópsias que tive que fazer, dado que na primeira a amostra se revelou inconclusiva e a segunda correu mal, com hemorragia do próprio tumor, havendo de novo o risco de a amostra se mostrar inconclusiva. E aqui, se me permitem, quero relevar o papel do Borges, o nosso "GT", que na sua tentativa de apressar o diagnóstico da anatomia patológica do arranjou um "qui pro quo" ético com um colega. Mas a verdade é que o diagnóstico veio mais rápido do que veio o primeiro. Obrigado, meu caro Borges.

Eu sabia que teria sempre o vosso apoio, mas foi muito bom sentir no ombro o calor do vosso apoio.

A grande lição* que tiro desta doença, para além da grande prova de amizade que tive, é que na vida, o mais importante é saboreá-la. Saboreá-la com os amigos e com a família. Saboreá-los, e este é o termo exacto, como quem saboreia um bom vinho velho (campo em que o GT se tornou um mestre).

Por isso, e por fim, meus caros, proponho-vos que brindemos à VIDA e à nossa AMIZADE!"




* Não entendo as pessoas que sendo amigas, ou tendo sido amigas de anos e anos, e que uma pequena zanga, ou mesmo grande que fosse, as tenha afastado, perante situações de doença desta natureza não sejam capazes de ultrapassar a desavença e ter um pequeno um gesto  de apoio, qualquer que seja (mesmo por intermédio de um dos muitos amigos em comum). Só revelam e relevam a sua pequenez. 

Uma estadia e duas historietas sem grande história


A cidade era Benguela. De nome inteiro: Cidade de S. Filipe de Benguela. O Hotel era o Tamariz. Ficava mais ou menos a meio da avenida principal – a 5 de Outubro – que desaguava na Praia Morena junto da estátua do fundador da cidade, sem antes ter deixado para trás um dos mais belos e antigos edifícios da cidade – a Escola Comercial, o antigo Cabo Submarino.
Ligeiramente recuado, o Tamariz fazia esquina. Do lado da principal avenida da cidade, com a casa Costa Júnior – uma casa de modas que ostentava com orgulho o título de casa comercial mais antiga da cidade, criada em 1889, segundo rezava uma tabuleta que encimava a frontaria principal do edifício – do outro lado rua, com o austero, sólido, e relativamente recente edifício cor de tijolo, do Banco de Angola.

Antigo, modesto, térreo, todo caiado de branco e bordado por único alpendre, amplo, fresco, que o circundava de um lado a outro, o Tamariz era uma construção antiga e com uma traça marcadamente colonial, provavelmente dos finais do século XIX ou do dealbar do século XX. O chão dos quartos de dormir era de cimento, chamado de branco (em contraposição com o cimento vermelho, mais fino e polido), mas que na realidade era mais acinzentado do que branco. Era um material comum, que se usava na época e em todas as casas, e que possuía a vantagem nada desprezível naquelas paragens africanas de as tornar mais frescas amenizando o tórrido calor. Aquele chão  do Hotel Tamariz já dava evidentes sinais de desgaste. Era irregular e as rachas, provocadas pela erosão tempo e pelas leis mais comezinhas da física, como a da "dilatação dos corpos", espalhavam-se irregularmente como metástases por toda a superfície. A água canalizada, se é que havia, não era uma característica comum a todos os aposentos. No que a mim e aos meus companheiros nos coube, esse sortilégio era substituído, com graça, por uma lavatório esmaltado de branco, já lascado nalguns pontos, assente sobre uma estrutura desenhada em ferro e pintada de um castanho-ferrugem. De um dos lados do bordão caía, pendurada, a tolha de rosto, branca e lavada e que parecia não perder nunca o cheiro ao ferro que a engomara. Ao lado, repousava no chão o jarro, igualmente esmaltado de branco, com o qual, para cumprirmos a higiene matinal, chegávamos a água à bacia superior – a “idade do plástico" não tinha ainda, felizmente, despontado.



Sobre as camas, tombavam do tecto majestosos mosquiteiros que além da utilidade óbvia de nos protegerem das picadas dos mosquitos, emprestavam aos modestos quartos um certo ar de aposento real. Eram bonitos os quartos (debaixo da cama, escondido, estava o inevitável bacio, também de branco esmaltado, que nos precavia das necessidades elementares). Sentíamo-nos uns pequenos reis.


Foram dias de encantamento. De um encantamento indescritível. Para alguns de nós, se não todos, vindos do mato, era a primeira vez que estávamos numa cidade – a histórica e bela capital do distrito! Benguela! E, como se não fora pouco, principescamente hospedados num Hotel. Episódio que, também, nos acontecia pela primeira vez!

Foi uma festa. Embora o motivo da estadia tivesse sido um assunto bem sério.

Tínhamos acabado de concluir, “com uma perna às costas”, como gostava de dizer a nossa professora, o exame da 4.ª classe na Escola Oficial da D. Carmelina, no Cubal. Seguiam-se os inevitáveis exames, esses, sim, já com maior grau de dificuldade, de admissão ao Liceu e à Escola Comercial e Industrial, escolas que ficavam sedeadas exactamente em Benguela, cidade, hoje e desde sempre, sem dúvida, a capital das minhas melhores memórias.
A viagem fora de combóio. Combóio "Mala". Uma viagem inesquecível.



E lá estávamos.
Deslumbrados! Com o mar, que nunca víramos! Com o azul do mar! Com o azul do mar da praia Morena – ponteada de casuarinas. Com o “Porta-Aviões”! Com os prédios altos, com mais de um andar! As ruas de alcatrão, animadas pelas pachorrentas “solexes” e pelas melodias dos pífaros dos sorveteiros, que de balalaica e calções brancos, e em carrinhos a pedal, com feitio de proa de caravela, pintados, não sei se de azul se de verde-mar, embelezavam as ruas cidade e, por um angolar, anunciavam – juro, juro com Deus – os melhores sorvetes do mundo! Os sorvetes Caravela.


Esmagados! Com a grandiosidade do cinema Monumental – o enquadramento do espaço e a arquitectura do Cine- Esplanada-Kalunga só anos mais tarde nos viriam a surpreender – e assombrados, imagine-se, com o conforto e o plano inclinado da Plateia e do Balcão que nos deixavam ver, sem ter de esticar o pescoço, como nos acontecia no raso  e plano cinema do Cubal, as proezas do John Waine, do Gary Cooper ou as pernas da Sofia Loren…

Eu sei lá! Tudo ou quase tudo, era novidade para nós!
E os “reclames” luminosos de néon? Estávamos fascinados com tantas luzes e tantas cores vivas que se acendiam e se apagavam e que davam à cidade um glamour próprio das cidades americanas que víamos no cinema como Los Angeles ou Las Vegas. O mais bonito deles todos era o espectacular espadarte da EPAL, logo no início de quem descia a Rua da Estação, no cruzamento da 5 de Outubro. Ora azul, ora branco, para logo a seguir ficar encarnado e depois voltar ao azul e ao branco, e assim sucessivamente pela noite fora! E a montra iluminada da luminosa e moderna Casa Branca? Era um encanto ver todos aqueles manequins vestidos a preceito. As noivas e os noivos.  Os últimos "gritos" da moda eram por lá, por aquela montra, que passavam! E a velhinha Casa Africana? Mais clássica, ostentava os bons tecidos de fazenda para fatos e bons sapatos para Homem e Senhora.





Nas noites quentes, que eram quase todas, um mar de gente, "em mangas de camisa", fazia picadeiro por aquela avenida iluminada pelos néons. Cavaqueava, espreitava as montras, saboreava sorvetes. Outro mar de gente ia fazer o mesmo picadeiro para a Praia Morena, à volta do "Porta-Aviões" e do paredão da praia. Assim se entretinha a noite, aguardando-se que esta, por volta da meia-noite, já mais fresca, nos convidasse ao regresso às casas.





Estávamos encantados!
O deslumbramento não era fruto apenas da tenra idade que ainda tínhamos, nove ou dez anos, e em que tudo nos maravilhava. Havia razões bem mais fundas.
Éramos, na verdade, gentios! Vínhamos do mato!... das anharas do Cubal! Sítio, naquela época, com meia dúzia de quarteirões de casas térreas, uma estação de caminho-de-ferro, ruas de terra batida, pouco iluminadas, um campo de futebol, dois colégios e um Chefe do Posto. Tudo nos encantava. Tudo nos deslumbrava. Tudo nos maravilhava.

Bom, meus caros, (antes que eu me esqueça. ao que vinha...), vamos às historietas:
Um dia, um daqueles maravilhosos dias, o Antero, Antero Esteves Lima, que era daqueles tipos sempre muito bem comportados, que nunca alinham em nada, incapaz de partir um pires que fosse, quanto mais um prato, muito introvertido e até um pouco estranho (basta dizer que não era do Benfica, nem do Sporting! Não tinha clube!!! Não era estranho um miúdo não torcer por um clube?) lembrou-se de comprar, ali numas das ruas que passavam atrás da Escola Comercial, por dois e quinhentos (meia-cinco), julgo eu, um coco! Um coco inteiro!
Eu e o Tozé Miranda que com ele dividíamos o quarto, quando o vimos de coco na mão, começamos logo a desafiá-lo e a “afiar” os dentes.
– Ó Antero, quando é que partes o coco, pá?
Perguntámos-lhe, pouco crentes na sua anuência, eu e o Tozé
– Não parto nada, pá. É para dar ao meu pai. Ele gosta muito de coco e lá no Cubal não há, pá! Respondeu, o Antero, com aquele ar sério e desconfiado que o caracterizava.
– Epá, deixa-te de fúfias! Parte lá isso, pá! Insistimos.
– Não parto nada. É para dar ao meu pai. Replicava, cioso da prenda que acabara de adquirir.
Adivinhava-se no olhar do Antero que o pai iria apreciar bastante a lembrança do filho. Até nisto o Antero era estranho. Normalmente, naquela época, estas doces lembranças só as tínhamos para com as nossas mães. Desconfiado, guardou-o na mala, com todo o cuidado (não fosse o coco partir-se...) entre as camisas e os calções justos que usava e que lhe realçavam o rabo espetado e foi-se deitar.
Eu e o Tozé, naquele exacto momento, com um simples entreolhar, traçámos, implacavelmente, o destino do coco. Sorrateiros esperámos pela noite e deixámos o nosso amigo Antero adormecer tranquilamente. Desprendemos o mosquiteiro, não fosse algum zeloso anophelis acordá-lo, e, pé ante pé, abeirámo-nos da mala e, enquanto o diabo esfrega um olho, fanámos o ditoso coco!
Nem por um segundo nos ocorreu a enorme mágoa e raiva que iríamos provocar ao Antero.
Com o coco debaixo do braço de um de nós, fomos para o quarto dos meus primos João e Manecas que ficava numa outra ponta da zona dos quartos.  Recordo-me que o Tozé só dizia:
– Temos de o partir só com uma pancada! Caso contrário, a Mariana acorda e estamos lixados! A Mariana era a nossa professora e mãe, exactamente, do Tozé...
E assim foi. Com uma única pancada, seca, o coco desfez-se em vários pedaços. A gula era tanta que nem nos lembrámos de aproveitar previamente, como era costume fazer-se, a aguadilha do coco que se perdeu pelas tais rachas que serpenteavam o chão de cimento.
No dia seguinte, quando o Antero deu conta que o coco com que esperava presentear o pai desaparecera, ficou lívido, branco, mais branco do que a cal que cobria com frescura o Hotel Tamariz. Percebeu logo quem tinha feito tamanha patifaria. Olhou para nós, rangeu os dentes, como costumava fazer, mas não disse nada. Não por desprezo ou qualquer sentimento desse tipo. Mas, percebi, por se sentir impotente. Sempre éramos dois. E dois – eu e o Tozé – sempre disponíveis para uma cena de pancadaria! De raiva incontida, mas incapaz de nos desafiar, fechou o punho e enfiou um murro… na parede do quarto com a mesma força com que nos esmorraria acaso não tivesse o compreensível receio de nos enfrentar...
O Hotel, dizem-me, ruiu. O Antero, não sei dele. Se regressou às origens, deve parar por terras do Fundão. Gostava de o ver, dar-lhe um grande abraço e oferecer-lhe, quanto mais não fosse, um café (de Angola) e um... bolinho de coco!
***
Naquele dia, era a vez de fazermos o exame de Admissão à Escola Comercial e Industrial. Já tínhamos feito o da admissão ao Liceu. Todos contentes, lá fomos, com o sentimento de que a coisa iria correr bem.
Era verdade! Ou porque estávamos bem preparados, ou porque não tínhamos ainda o sentido da responsabilidade, ou por ambas as coisas, embora eu me incline mais para a primeira – a professora era a D. Mariana! – o certo é que nunca pensávamos que as coisas poderiam dar para o torto e acabar numa “raposa”.
À uma boa preparação e à uma certa descontração, juntavam-se os Santinhos que as nossas mães, sempre muito cuidadosas, não se esqueciam de colocar no bolsinho dos nossos casaquinhos – que só usávamos, contrafeitos, nos dias de festa – e que nos davam aquela sensação confortável de que Alguém, algures, zelaria por nós .
Matabichámos, como de costume, no Salão que corria toda a ampla varanda alpendrada e de onde se espreitava o Jardim da Câmara. O chão, tal como o dos quartos, era de cimento, mas encarnado e bem encerado, o que dava ao espaçoso Salão um ar luxuoso. As toalhas que cobriam as mesas, bem como os guardanapos, eram de algodão, branquinhas e com aquele cheiro agradável a lavado e à ferro engomado. Os empregados, pretos, envergando casacos brancos, com botões de latão dourado, mas já esbranquiçados pelo uso, serviam-nos com delicadeza, mas sem aquela humildade a que estávamos habituados nas nossas zonas do interior.
Era uma atmosfera que nos fazia lembrar a do Restaurante do combóio Mala em que tínhamos viajado, com vantagens para este que nos parecia mais selecto e requintado, desde logo pela forma com que éramos chamados para as refeições: um empregado, vestido a rigor (sempre de branco), percorria as carruagens badalando de uma forma cadenciada um pequenino sino! Parece-me ter ainda no ouvido aquela melodia.




matabichados, dirigimo-nos, em fila, mais ou menos indiana, alguns ainda a comer o resto do pão-com-manteiga, para a Escola Comercial que era ali perto. Atravessava-se o colorido jardim debruado de Acácias em flor que havia em frente ao Tamariz e à Câmara Municipal. Percorríamos um pequeno quarteirão de casas antigas e chãs, cruzávamos a Fausto Frazão – uma larga e bela avenida de vivendas, relvados e elegantes palmeiras – e logo deparávamos com a Escola Comercial. Cercava-a um gradeamento em ferro, alto e distinto.

Um pátio amplo, que se prolongava até à umas oficinas onde se faziam os trabalhos manuais, em terra batida e muito solarengo, recatava-a do movimento e de algum bulício daquela longa Avenida 5 de Outubro que terminava junto da estátua do fundador da cidade.
Era um belo edifício. Feito em madeira. As tábuas dispunham-se verticalmente, em jeito de paliçada, tal qual o gradeamento em ferro. O soalho, igualmente em madeira, assentava em pilares de cimento com uma altura que não ultrapassava o metro. Uma escada, já carcomida pelo uso, levava-nos a um varandim que antecedia as salas onde se realizavam as provas de que reuníamos os conhecimentos tidos por necessários para ingressar na Escola Comercial.
Antes de a subirmos, a D. Mariana dava-nos os últimos conselhos.
– Não se esqueçam de fazer o rascunho! Recomendava. Leiam bem as perguntas! Acrescentava.
O primeiro Ponto era o de Português e, como era da praxe, terminava com a sacramental redacção. Hoje, o ponto, recebe o nome de Teste (influência americana) e a redacção o nome pomposo de Composição. Mas como se tratava de redigir, o nome que se lhe dava, e bem, era de Redacção. E a dita, naquele ano, era sobre o cão ou um outro animal doméstico à nossa escolha. Já não sei qual foi o quadrúpede que escolhi, mas para esta história, também, pouco importa. Feito o rascunho, passado a limpo, estava o Ponto terminado. Não era assim tão fácil... Nisto passava-se, julgo, hora e meia.
Cá fora, no pátio, à sombra de um tamarineiro, creio eu, que lá havia, esperava-nos a D. Mariana. À medida que íamos saindo, auscultava as nossas impressões sobre o Ponto e recolhia os respectivos rascunhos, com os quais haveria, mais tarde, já no hotel, de confirmar, ou não, as nossas impressões sempre optimistas.
Havia uns, como eu, que à inevitável pergunta “como é que correu”, se resguardavam num equidistante e pouco comprometedor “mais ou menos...”.
O último a entregar o rascunho foi o Aníbal, o malogrado Aníbal Fernando Nunes Fernandes, meu querido amigo, filho do Noventa, alfacinha de gema, como gostava de dizer, natural de Alcântara e adepto orgulhoso do seu Atlético Clube de Portugal, de quem a D. Mariana esperava uma bela Redacção – redigia muito bem e, reconhecido por todos, era dotado de uma fértil imaginação.
– Então, Aníbal, correu bem? Qual foi o animal que escolheste?
Debaixo dos óculos que usava desde que o conhecemos – o que o tornava singular e até invejado – o Aníbal, com aqueles olhos bem vivos, sorriu, seguro de que tinha feito melhor que os outros e, acima de tudo, diferente, respondeu célere e convicto da façanha que cometera.

              – O Infante D. Henrique!

A D. Mariana empalideceu. Estávamos a ver que lhe dava um fanico, coisa a que era muito atreita. Todos nos lembrámos de uma vez, quando chegava a roupa ao pêlo ao Tozé, seu filho, lhe acontecera o mesmo.

– O Infante D. Henrique?!!! Perguntava incrédula a D. Mariana.

– O Infante D. Henrique?!!! Insistia incrédula a D. Mariana

             – Mas o Infante é um animal?! Gritava-lhe a D. Mariana

 O Aníbal perdeu o sorriso e, com ele, a convicção de que fizera uma brilhante redação, e gaguejando… balbuciava:

– Lá dizia para se escolher o cão ou um outro animal qualquer. Eu escolhi o Infante D. Henrique...

– Mas o Infante é um animal!? Retorquia a D. Mariana.
– Tu! Tu é que és um animal! Vociferava a D. Mariana
             – Mas a Sôssôra não diz que os Homens são também animais?! Lá não dizia...

             –  Mas dizia doméstico! Interrompia a D. Mariana furiosa.
– E nós não somos também animais domésticos?! Exclamava o Aníbal.
– Não, não somos! Minha abécula! Bom, depois no Hotel conversamos. Rematou a D. Mariana.
            O Aníbal levou a mão direita à cabeça, com o seu jeito, coçou-a, antevendo o cenário que o esperava.
            Mas não. A D. Mariana ao ler o rascunho logo constatou que o Aníbal, embora fugindo claramente... ao tema, fizera uma belíssima redacção. Estava muito bem escrita e tinha a certeza que o Júri, sábio e ponderado, como é suposto serem os júris, não iria deixar de valorizar a qualidade da redacção, esquecendo que o Aníbal, sem querer, chamara nomes ao mais célebre e ilustre membro da Ínclita Geração.           

            A qualidade do trabalho da D. Mariana, à mistura com algumas orelhas de burro e uns bofetões (só se perdiam aqueles que caíam no chão...diziam os nossos velhotes) ficou sobejamente confirmada. Muitos de nós dispensámos das orais e todos passaram para o 1.º ano do Liceu, ou melhor... do Colégio Eça de Queiroz, para onde voltámos! E onde outras histórias para contar se sucederam!

Músicas do meu tempo - Amapola



Amapola é uma canção italiana composta em 1941 pelo maestro Lacalle e que durante os anos de sucesso foi interpretada, como acontece com as grandes canções, por vários dos mais importantes cantores, quer populares, quer clássicos, como nesta versão do grande tenor Alfred Kraus de 1959. Anos mais tarde, numa versão orquestral de maestro Ennio Morricone, veio a fazer parte da banda sonora de um dos melhores filmes de sempre, "Era uma vez na América", e, curiosamente, a ilustrar e enriquecer uma das mais belas cenas do filme, quando o jovem  David Aaronson espreita apaixonadamente a  Deborah a dançar, precisamente, este tema, em pontas, num celeiro, no meio de sacos serapilheira cheios de farinha!


Lembro-me, com seis ou sete anos, de cantarolar repetidamente  o refrão da canção: "Amapola, lindisima amapola/No seas tan ingrate y ámame". Lembro-me das ruas por onde  a cantarolava. Só muitos anos mais tarde é que "descobri" que uma amapola  em português é uma papoila... (Para um Benfiquista tem um espacial significado...)

Fotos da minha vida - III (Os bichos-do-mato)



No imaginário de muito bom português (intelectual ou não) a vida dos colonos em África era uma vida fácil. Bastava abanar a árvore das patacas e estas, ao primeiro abanão, caíam aos molhos no regaço dos colonos, como as mangas caíam de maduras (e aos montes) no chão. De acordo com essa "visão histórica" a preto e branco, que ainda prevalece (e prevalecerá, assim o obriga o politicamente correcto onde estamos atolados), além de fácil, era uma vida de exploração crua e nua dos colonizados. Mas a realidade não era bem essa. Em África, a vida dos colonos era dura e arriscada (e dos colonizados também, claro). Eram difíceis as condições de vida. Para quem vivia longe das pequenas cidades, mais árdua era a luta pela vida que, ao fim e ao cabo, é o fado a que os comuns dos mortais, para muito longe que tentem fugir em busca de uma vida melhor (como fizeram os colonos), não logram escapar. A vida dos colonos portugueses pelo Além-Mar, não deixou de ser, como a de muitos outros por esse mundo (a dos emigrantes portugueses, por exemplo), uma verdadeira luta pela vida. Como sempre, é assim a vida, uns ganharam-na. Muitos perderam-na.

Em África, quem se dirigia à cidade não dizia que vinha de um pequeno lugar, dizia que vinha do mato, porque a expressão vir do mato ou ser do mato traduzia melhor a lonjura e o isolamento  de onde se vinha. E os que se afeiçoavam a este modo de vida, e só muito raramente desciam à localidade mais próxima, eram os chamados bichos-do-mato.
Esta ponte, como tantas outras, é bem o retrato do grande isolamento e dos riscos em que se vivia no mato. Eram pontes como esta, de troncos, que separavam (pela sua eloquente fragilidade)  e uniam (como único e obrigatório ponto de passagem) a vida no mato e a vida nas pequenas povoações. Lembro-me bem desta. Era arrepiante atravessá-la (hoje é ainda assustador olhá-la). Tudo rangia: as molas da Bedford (que "pegava" à manivela), os pilares da ponte, a carga de sisal, a carroçaria. Tudo abanava. O ajudante, em cima da carga, segurava-se ao barbante que amarrava o fardo, como um boieiro ao cavalo num rodeio. O camionista tinha que saber apontar bem a camioneta às tábuas da ponte que serviam de trilho.

Como se pode constatar pela foto. naquele dia não chovia. Imaginem, agora, atravessá-la debaixo de uma daquelas "torrenciais chuvadas” africanas! Era uma aventura. Era um risco de vida.
Não era fácil a vida dos colonos. E a dos colonizados também. E foram eles os colonos (e, claro, claro, os colonizados também) que, deste modo, construíram a hoje tão cantada lusofonia com que os bem pensantes enchem a boca esquecendo-se que foram os colonos, tão detractados pelas suas próprias bocas, que ao longo de séculos criaram os laços que unem hoje os povos da lusofonia.
 


Fotos da minha vida - II (Nós, os Mendes e o Quendo)




Das fotos da minha infância, esta tem a minha clara predilecção. Vivíamos no mato. No Quendo. Um aglomerado populacional composto por... duas casas! A nossa e a dos Mendes. Ao todo, éramos nove almas que ali vivíamos. Felizes. Longe da “civilização” mais próxima que era o Cubal. Na nossa camioneta, que "pegava" ainda à manivela, demorávamos, no tempo seco do cacimbo, mais de meio dia de viagem  e um ou dois no tempo das chuvas, para chegarmos à tal "civilização". Os nossos pais lutavam pela vida, ali, naquele lugarejo,  e nós, pequenotes, saboreávamos a doçura da meninice, das mangas e das goiabas. Esfalfávamo-nos em loucas corridas de arcos de bicicleta e em felinas subidas aos galhos das árvores em busca dos bem escondidos ninhos dos passarinhos ou em mergulhos arriscados no rio.
O rio era o Catumbela, que, muitos quilómetros mais adiante, iria desaguar no Atlântico, junto à cidade do Lobito. No tempo das cheias as suas águas turbulentas e barrentas passavam quase à beira das nossas casas. E era ali, naquela margem, quando o rio ia mais calmo, que as duas famílias se juntavam em refrescantes e agradáveis piqueniques. 

A fotografia terá perto de 60 anos  e  tem – o que é raro em fotos – dois focos: os que olham para a câmara (o meu pai, sentado, o Sr. Corona, o Sr. Mendes, a D. Joselinda, a minha prima Maria e o homem mais alto de quem não me lembro o nome) e os que centram a  atenção na minha tentativa de arranjar um lugarzinho na fotografia e para a posteridade: a minha mãe, a minha irmã (de laçarote) e a Matilde que me ajuda a equilibrar e foi quem me ensinou as primeiras letras (a minha 1ª classe foi doméstica). E há um, de boné, que, embora esteja no centro geométrico da foto, passa ao lado de toda esta acção. Estava longe dali, talvez na serra para onde olhava. Estava, como hoje se diria, “na dele”, o Zeca (irmão mais novo da Matilde e da Isaura) – o meu companheiro e amigo das corridas com arcos de bicicleta. 

Bons velhos tempos!



As fotos da minha vida - I (O Mousinho)





Num chuvoso dia de Abril, nos idos de 1953, depois de uma longa viagem numa  camioneta da companhia Cabanelas, que, ida de Vila-Real, percorrera temerosamente o serpentado de terra batida da serra do Marão e atravessara o rio Douro em direcção à capital do então Império, a minha mãe, nesse mesmo dia ainda, subia a custo, com a minha irmã ao colo e comigo pela mão, as já gastas escadas de portaló do velhinho paquete "Mousinho" que, curiosamente, fazia a sua última viagem de ida-e-volta pelos mares. O destino era a moderna e laboriosa cidade do Lobito onde o meu pai, ali desembarcado um ano antes, já tisnado pelo Sol de África, nos aguardaria. Tinha dois anos e três meses. A minha irmã um ano.

Foi com uma particular emoção que há uns tempos descobri (a "web" tem esta virtualidade) esta foto do Mousinho e um pouco da sua história à qual o destino me ligou. Construído na Alemanha, de bandeira brasileira, recebeu o nome de Corcovado e mais tarde Maria Christina. Veio a ser adquirido, em 1932, pela Companhia Colonial de Navegação, sendo baptizado, e assim acabou os seus dias, com o nome de Mousinho.

Como é de calcular não tenho qualquer memória desta primeira viagem marítima. 

A diferença não está só na cor das gravatas...

 
 
Ontem, ao ver a triste exibição, embora empenhada, deste meu actual Benfica diante do nosso eterno rival, lembrei-me de uma expressão da minha saudosa e arguta professora de muitos anos – D. Cecília. Quando se apercebia – e como lhe era tão fácil dar conta! – que um aluno se apresentava com uma qualquer “matéria” mal alinhavada, estudada por alto, decorada, mas mal assimilada, atirava-lhe de imediato: “tens tudo isso colado com cuspe”. Ora, assim me parecem os processos de jogo do Benfica de Rui Vitória. Colados com cuspe. Mal assimilados. Mal trabalhados. A olho nu, vê-se que ali não há consistência, não há organização táctica e não há uma “ideia de jogo”. Tanto está no jogo bem, como logo a seguir desparece por completo. A qualidade do jogo, quando a há,  não emerge do trabalho que se fez durante a semana, mas da inspiração e do entendimento que dois ou três jogadores possam em dado momento do jogo ter ou não ter. Isso é nítido. A equipa está mal trabalhada. Na semana passada, melhor do que ninguém, e sem, de certeza, o querer,  Jardel, ao jornal “A Bola” , resumia assim o que acabei de dizer: «Rui Vitória deixa-nos muito mais à vontade». E os jogadores, gratos, vá lá, pagam esse estarem "à vontade" com empenho que, sem dúvida, têm mostrado. Mas tão só. Pois é. Estão vontadinha e entregues à inspiração de cada um. Há uma exasperante falta de liderança. Por uma simples razão: Rui Vitória não é um líder. Ponto.

Imaginem que as declarações que a seguir vou transcrever não teriam sido ditas por quem provocatóriamente as proferiu –  e que causaram grande celeuma –  mas que teriam sido enunciadas por um dos muitos comentadores desportivos: «Com o tempo as rotinas vão acabando. O cérebro daquilo não está lá, o treino não é o mesmo…». Desde logo, não teriam causado polémica nenhuma porque não configuravam um auto-elogio arrogante, a que nós, portugueses, somos avessos e que só o desculpamos em José Mourinho (enquanto ganhar...). O que é que ressaltava hoje daquelas palavras? Que tinham sido uma antevisão premonitória e certeira do que é hoje o Benfica. Na altura, provocatoriamente e com uma arrogância que não lhe concedemos, Jorge Jesus estava a ficcionar o filme do que se iria passar com o Benfica sem ele. Agora estamos a ver o filme transporto para a realidade. E é um pesadelo.
Jorge Jesus acertou em cheio. Na "mouche". E, assim, sem o "cérebro", vão três: a Supertaça, a Taça de Portugal e três na Luz... É o tri. Não o que queríamos, mas o que não desejávamos...

Dizem algumas vozes que falta talento e soluções ao Benfica. Que perdeu qualidade. Que Filipe Vieira não deu ao Rui Vitória o que magnanicamente  ofereceu ao Jorge Jesus. Que o Sporting, e essa é a grande diferença para o Benfica, possui um bom e forte meio-campo. E dizem-no como se o presidente do Sporting tivesse adquirido no início da época um novo meio-campo e oferecido a Jorge Jesus. Dizem essas mesmas vozes que o problema do Benfica está, ao contrário do rival, exactamente no meio-campo. Qua falta alguém, um “play-maker”, ali no miolo. Mas repare-se: o meio-campo do Sporting (Adrien, William e João Mário e todos com origem na formação...)  já lá estava no ano passado! Não há ninguém novo!  Quanto ao Benfica, qual era o meio-campo no anao passado? Samaris, Talisca e Pizzi.  Por onde é que andam? Não é que estão lá todos, todos! Qual é então a grande diferença entre o miolo do Benfica, hoje, e o miolo do Sporting, hoje? A grande diferença –   julgo que estará na cabeça de todos (daqueles que não se recusam a ver) –  chama-se Jorge Jesus,  o “cérebro”! Esse mesmo que, sabendo bem o que vale, narcisicamente, assim se autointitulou. Esse mesmo que, expressando-se nem sempre em bom português, passa magistralmente a mensagem. que pretende. Mobiliza jogadores e adeptos. Dá corpo e alma às equipas que orienta. Esse mesmo, que é um líder nato, um incansável profissional e que, reconheçamos com a humildade que nele mingua, percebe “montes” de futebol. Esse mesmo de quem os comentadores  e "intelectuais" do futebol não gostam. Esse mesmo que o Benfica amadureceu ao longo de seis anos para... o oferecer de bandeja (qual passe!) ao Sporting!

E é isto que me dói.

 

Paris

Não percebo, sinceramente não percebo, que diante de um acto terrorismo desta envergadura, mesmo antes de se dar corpo à indignação, senão mesmo à revolta, que este acto ignóbil exige, a primeira preocupação de muita gente seja a de manifestar receio pela eventual suspensão do acordo de Schengen, suspensão que aliás o próprio acordo prevê em situações idênticas a esta, e que seria sempre um mal menor face ao mal maior que é o terrorismo islamita, e pelo receio de se gerarem certas pulsões islamofóbicas. Receios, aliás, que se têm mostrado injustificados, como  se  viu pela "reacção" ao ataque terrorista ao Hebdo, mas, receios e medos, com que os terroristas jogam e exploram com mestria e vão, assim, avançando, avançando, avançando.

É preciso assumir definitivamente que estamos numa guerra -- que nos foi abertamente declarada -- contra a civilização das luzes e da liberdade que é a nossa, a Ocidental (que também teve as suas trevas, é bom lembrar e reconhecer). Mas é preciso assumi-la (a guerra e civilização) sem medos e sem vergonha (Glucksmann). E uma guerra não se ganha apenas com sistemas e preocupações de índole securitária, a dada altura é preciso passar à ofensiva. É este o momento. Não se pode esperar paulatinamente pelo próximo atentado. Mais, nesta guerra tem que se exigir ao Islão moderado, se o é, que mostre de que lado é que está. É muito estranho que face aos sucessivos e monstruosos atentados o Islão moderado continue em silêncio. É estranho, muito estranho, que face a tudo isto não venham em massa para a rua gritar bem alto e de uma forma autêntica, que estes actos terroristas  atentam contra a humanidade e contra o seu Islão. Mas quando alguém ofende o profeta, por palavras ou caricaturas, já sabem vir para rua em massa, queimar bandeiras e mostrar a sua raiva e o seu ódio infinito. É estranho. Muito estranho.

Estou revoltado. Muito revoltado. Com tudo isto e com a passividade de um certa intelectualidade europeia, quer de esquerda, quer de direita, que, perante os ataques criminosos à sua (e à nossa) liberdade por parte do terrorismo islâmico se agacham refugiando-se no silêncio ou, quando falam é apenas para se manifestarem receosos de um eventual islamofobismo. Mas são os mesmos que ao mais pequeno gesto ou tique da Igreja Católica menos consentâneo com a LIBERDADE, que logo colocam em maiúsculas, saltam como heróicos e fogosos combatentes da liberdade supostamente em causa. Estou revoltado. Muito. Mas sereno.

11 de Novembro

A propósito da independência de Angola, deixei no "Duas ou três Coisas", blog de Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador em Angola durante os anos de 82 a 86, e mais tarde no Brasil e em Paris, o seguinte comentário:

Estava lá nessa noite. Em Luanda. Eu e o meu grupo de amigos, estudantes universitários, todos afectos ao MPLA, decidimos não estar presentes no local da cerimónia, na recém-denominada praça 1º de Maio, por razões de segurança, como, aliás, o fez a esmagadora maioria da população de Luanda que em casa ficou. Não era para menos: a cerca de 30 quilómetros de Luanda, em Kifandongo, travava-se a mais dura das batalhas entre o exército do MPLA (as FAPLA), apoiadas pelo exército cubano, e a FNLA de Holden Roberto alimentada pelo exército da república do Zaire. Ouvia-se em Luanda a artilharia pesada. Não se sabia qual o epílogo dessa batalha. Temia-se que o tenebroso Holden Roberto pudesse entrar em Luanda. A chacina seria grande. O medo era justificado. Esse temor levou a que a população ficasse em casa. Eu incluído. Hoje, lamento não ter assistido a esse momento histórico. Mas é, hoje, um momento histórico que não comemoro.
Comentário do Embaixador: “É minha impressão ou nestes anteriores comentários há muito saudosismo, muito "Africa adeus"?”

Eis o que foi a minha resposta:

Caro embaixador,

Uma coisa é   para quem nasceu ou se conheceu em África, como eu que fui para lá com dois anos de idade, e que lá viveu durante muitos anos (regressei em 77) –  ter saudades desses tempos que eram, sem qualquer dúvida, “tempos coloniais”, outra coisa é ter saudades do colonialismo. São coisas bem distintas. Haverá alguns que as terão, não o nego. Mas em muitos destes comentários, ajuízo eu, há mais saudades dos “tempos colonias” do que do colonialismo. E é natural que assim seja. Em África ficou lá a nossa meninice, a nossa infância, as fisgas e as árvores onde caçávamos os passrinhos, os rios onde nos banhávamos  e pescávamos. Ficaram lá os morros de salalé, os imbondeiros. Ficou lá o cheiro à terra que emergia depois da chuva. Ficaram lá todas estas memórias. E todos, incluindo os colonos, têm o direito à sua memória e à nostalgia que ela inevitavelmente, envolve. Ficaram lá também, enterrados, os nossos mortos –  é bom não esquecer –  avós, pais, tios, esposas e filhos.  Para além de toda esta memória que por lá ficou sepultada –  e que não é fácil revisitá-la: não se vai a África com a mesma facilidade com que se vai a Trá-os-Montes matar saudades –    em muitos deles permanecerá ainda uma réstia de grande amargura porque viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi”, como bem refer o embaixador.

Melo Antunes foi, dos militares de Abril, o mais corajoso. Fez o 25 de Abril. Fez o 25 de Novembro e nesse mesmo dia teve a coragem de matar à nascença uma “caça às bruxas” que se adivinhava, ao afirmar que não haveria de democracia se o PCP fosse dela excluído (e hoje, por razões óbvias, é bom recordá-lo). E já no fim da vida, ao contrário de outros, que juntamente com ele tiveram papel preponderante na descolonização, teve a coragem de reconhecer que poderiam ter feito melhor descolonização. É a humildade dos grandes.

Subscrevo inteiramente este seu último “post”, excluindo um “senão”, mas da maior importância: “a tragédia que foi a colonização”. Reduzir a colonização a uma tragédia é um grande erro de perspectiva histórica: o Brasil é o que é hoje, cultural e lusófonamente falando, “graças” à colonização. Sem ela o Brasil até poderia ser bem melhor, mais evoluído, mas não seria a mesma coisa… você que o diga. As suas fronteiras são o que são hoje, “graças” à colonização. Hoje, os brasileiros orgulham-se delas e, se for preciso, bater-se-ão por elas, mas antes foram os colonos que as desenharam, que as defenderam e que morreram por elas. A grandeza territorial do Brasil de que os brasileiros se ufanam foi conquistada, construída e defendida com o sangue dos colonos portugueses. O mesmo se passa com as fronteiras de Angola e com as dos outros países (excepto Cabo Verde). Se hoje há cerca de 280 milhões de falantes em português, e é uma das línguas mais faladas no mundo, “graças” à colonização. Hoje fala-se em lusofonia, com a qual muita gente “enche a boca”, “graças” à colonização e…, vou ousar dizê-lo sem pejo nenhum por ser historicamente verdade, graças aos colonos! Graças aos colonos! Se se debita, e bem, aos colonos as tragédias da colonização, que as houve e muitas, é inteiramente justo creditar-lhes algumas das suas boas e belas heranças.

“Pode-se ir à Índia sem Vasco da Gama? Talvez possa, mas para um português, não se deve. Não digo tanto “sem Vasco da Gama”, mas “sem Goa”, sem a memória da nossa identidade que lá ficou um pouco enterrada e está a cair aos bocados. Mas mesmo que já estivesse toda no chão, enterrada por desprezos diversos, o lugar está lá, as almas estão lá num canto qualquer a assombrar-nos. A história é assim: não se pode ir à Índia com inocência absoluta, nem aliás os indianos nos responderão com inocência. A história pesa. Não é saudosismo, é respeito por nós próprios que fomos feitos por aqueles homens que por lá andaram à espadeirada, à pimenta, na pirataria, brutos, cruéis, gananciosos, vaidosos, crentes, santos, líricos, o que se queira, mas nossos. Palavras escritas por Pacheco Pereira, a propósito de uma viagem de um presidente da República à India… (em Abrupto 12/01/07)

Maria Barroso

A propósito do desaparecimento de Maria Barroso, deixei este comentário no Duas ou Três Coisas:

Senhora de grande coragem e grande cultura. Recordo-me da primeira vez (e única) que a vi. Estávamos em plena crise académica em Coimbra em 1969. Tempos difíceis, apesar da "abertura marcelista". Contavam-se pelos dedos os que tinham a coragem de publicamente manifestar solidariedade à luta dos estudantes. Professores foram poucos: Paulo Quintela e Orlando de Carvalho. Maria Barroso, juntamente com Tóssan, teve essa coragem. Numa das muitas assembleias gerais que se realizaram no enorme ginásio da A.A.C., a abarrotar de "malta" (eu pendurado num dos espaldares), esteve presente para manifestar a sua solidariedade e a “de outros que ali não podiam estar", como referiu na altura. Disse dois poemas com o seu timbre inconfundível e a sua irrepreensível dicção: Nossa Senhora da Apresentação de Álvaro Feijó e Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, mais conhecido por A las Cinco em Punto de la Tarde, de Garcia-Lorca. Inolvidável. O meu pesar pela sua morte. Que descanse em paz.

Músicas do meu tempo

Há um tempo que é nosso e há um outro tempo que sendo ainda nosso já deixou de ser o nosso tempo. É por isso que nós – os que já contamos dois tempos – dizemos com uma frequência cada vez maior: no meu tempo…

Desse tempo, a que chamamos “o nosso tempo”, há coisas que nos ficaram indelevelmente gravadas para sempre. Sabores, cheiros, imagens, pessoas, objectos, brincadeiras, palavras, livros, músicas, marcas, filmes. E é exactamente por isso, e por estas  coisas, que a esse tempo chamamos o nosso tempo. E quando hoje, neste tempo que já não é o nosso tempo, uma dessas coisas nos vêm à memória é como se por breves instantes – mais fugazes que breves – toda a realidade daquela época nos envolvesse de novo. Voltamos de novo ao conforto daquele nosso tempo.
Isso acontece-me, por exemplo, quando oiço esta Manha de Carnaval e outras músicas do meu tempo que hei-de trazer aqui:





A Lenda Maior - Eusébio Eusébio Eusébio

 
Partiu a figura maior do Sport Lisboa e Benfica. Fica-nos a lenda. Dou-me conta que esta lenda faz parte das mais indeléveis memórias da minha infância e adolescência. Nos meus livros da escola, onde havia margens ou páginas em branco, escrevia repetidamente: Goooooooooooooolo do Eusébio! Gooooooooooooooolo do Eusébio! Não me cansava. Aqueles golos supersónicos (estávamos, então, na era dos foguetões…) chegavam a África, direitinhos à minha alma benfiquista, pelas vozes magistralmente radiofónicas do Artur Agostinho e do Amadeu José de Freitas. Eram os relatos. Épicos relatos. Nas tardes soalheiras dos Domingos o meu relvado era o Parque da Vila ou o Parque do Ferrovia (verdadeiros olimpos da minha juventude) e o rádio transístor (o mais recente “gadget” da época) o inseparável companheiro sempre bem chegado ao ouvido. Chegavam golos de todos os sítios: da Luz, da Tapadinha, de Alvalade, do Mário Duarte, do Estádio do Mar, do Vidal Pinheiro, das Antas, do Lavradio… Nos dias que se seguiam, radiante (com despreocupação própria de menino), repetia incessantemente de viva voz a caminho da Escola os golos do Eusébio. Chegado à escola, mal lograva esconder-me do olhar atento e severo da professora Mariana ou da D. Cecília inundava os livros e cadernos com os golos do Rei. Era o meu herói. Atirava ao golo com mais pontaria e destreza com que John Wayne, de pistola na mão, acertava numa lata atirada ao ar ou, naquela derradeira fracção de segundo, atingia mortalmente um índio felino, antes de este cravar um punhal nas costas do desprevenido e “inocente” cara-pálida! Era certeiro. Demolidor. Tão certeiro que muitos dos seus golos, acreditem, saíam-me da garganta ainda antes de ele os “disparar”. Era temível. E temido pelos adversários. Difícil, era “placá-lo” (acredito que só um central intransponível como o meu querido amigo Zé Lemos o conseguiria fazer). Só a morte o não temeu. Mas a sua lenda venceu já, inapelavelmente, a lei implacável da morte que agora o levou, goleando-a para a eternidade.