11 de Novembro

A propósito da independência de Angola, deixei no "Duas ou três Coisas", blog de Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador em Angola durante os anos de 82 a 86, e mais tarde no Brasil e em Paris, o seguinte comentário:

Estava lá nessa noite. Em Luanda. Eu e o meu grupo de amigos, estudantes universitários, todos afectos ao MPLA, decidimos não estar presentes no local da cerimónia, na recém-denominada praça 1º de Maio, por razões de segurança, como, aliás, o fez a esmagadora maioria da população de Luanda que em casa ficou. Não era para menos: a cerca de 30 quilómetros de Luanda, em Kifandongo, travava-se a mais dura das batalhas entre o exército do MPLA (as FAPLA), apoiadas pelo exército cubano, e a FNLA de Holden Roberto alimentada pelo exército da república do Zaire. Ouvia-se em Luanda a artilharia pesada. Não se sabia qual o epílogo dessa batalha. Temia-se que o tenebroso Holden Roberto pudesse entrar em Luanda. A chacina seria grande. O medo era justificado. Esse temor levou a que a população ficasse em casa. Eu incluído. Hoje, lamento não ter assistido a esse momento histórico. Mas é, hoje, um momento histórico que não comemoro.
Comentário do Embaixador: “É minha impressão ou nestes anteriores comentários há muito saudosismo, muito "Africa adeus"?”

Eis o que foi a minha resposta:

Caro embaixador,

Uma coisa é   para quem nasceu ou se conheceu em África, como eu que fui para lá com dois anos de idade, e que lá viveu durante muitos anos (regressei em 77) –  ter saudades desses tempos que eram, sem qualquer dúvida, “tempos coloniais”, outra coisa é ter saudades do colonialismo. São coisas bem distintas. Haverá alguns que as terão, não o nego. Mas em muitos destes comentários, ajuízo eu, há mais saudades dos “tempos colonias” do que do colonialismo. E é natural que assim seja. Em África ficou lá a nossa meninice, a nossa infância, as fisgas e as árvores onde caçávamos os passrinhos, os rios onde nos banhávamos  e pescávamos. Ficaram lá os morros de salalé, os imbondeiros. Ficou lá o cheiro à terra que emergia depois da chuva. Ficaram lá todas estas memórias. E todos, incluindo os colonos, têm o direito à sua memória e à nostalgia que ela inevitavelmente, envolve. Ficaram lá também, enterrados, os nossos mortos –  é bom não esquecer –  avós, pais, tios, esposas e filhos.  Para além de toda esta memória que por lá ficou sepultada –  e que não é fácil revisitá-la: não se vai a África com a mesma facilidade com que se vai a Trá-os-Montes matar saudades –    em muitos deles permanecerá ainda uma réstia de grande amargura porque viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi”, como bem refer o embaixador.

Melo Antunes foi, dos militares de Abril, o mais corajoso. Fez o 25 de Abril. Fez o 25 de Novembro e nesse mesmo dia teve a coragem de matar à nascença uma “caça às bruxas” que se adivinhava, ao afirmar que não haveria de democracia se o PCP fosse dela excluído (e hoje, por razões óbvias, é bom recordá-lo). E já no fim da vida, ao contrário de outros, que juntamente com ele tiveram papel preponderante na descolonização, teve a coragem de reconhecer que poderiam ter feito melhor descolonização. É a humildade dos grandes.

Subscrevo inteiramente este seu último “post”, excluindo um “senão”, mas da maior importância: “a tragédia que foi a colonização”. Reduzir a colonização a uma tragédia é um grande erro de perspectiva histórica: o Brasil é o que é hoje, cultural e lusófonamente falando, “graças” à colonização. Sem ela o Brasil até poderia ser bem melhor, mais evoluído, mas não seria a mesma coisa… você que o diga. As suas fronteiras são o que são hoje, “graças” à colonização. Hoje, os brasileiros orgulham-se delas e, se for preciso, bater-se-ão por elas, mas antes foram os colonos que as desenharam, que as defenderam e que morreram por elas. A grandeza territorial do Brasil de que os brasileiros se ufanam foi conquistada, construída e defendida com o sangue dos colonos portugueses. O mesmo se passa com as fronteiras de Angola e com as dos outros países (excepto Cabo Verde). Se hoje há cerca de 280 milhões de falantes em português, e é uma das línguas mais faladas no mundo, “graças” à colonização. Hoje fala-se em lusofonia, com a qual muita gente “enche a boca”, “graças” à colonização e…, vou ousar dizê-lo sem pejo nenhum por ser historicamente verdade, graças aos colonos! Graças aos colonos! Se se debita, e bem, aos colonos as tragédias da colonização, que as houve e muitas, é inteiramente justo creditar-lhes algumas das suas boas e belas heranças.

“Pode-se ir à Índia sem Vasco da Gama? Talvez possa, mas para um português, não se deve. Não digo tanto “sem Vasco da Gama”, mas “sem Goa”, sem a memória da nossa identidade que lá ficou um pouco enterrada e está a cair aos bocados. Mas mesmo que já estivesse toda no chão, enterrada por desprezos diversos, o lugar está lá, as almas estão lá num canto qualquer a assombrar-nos. A história é assim: não se pode ir à Índia com inocência absoluta, nem aliás os indianos nos responderão com inocência. A história pesa. Não é saudosismo, é respeito por nós próprios que fomos feitos por aqueles homens que por lá andaram à espadeirada, à pimenta, na pirataria, brutos, cruéis, gananciosos, vaidosos, crentes, santos, líricos, o que se queira, mas nossos. Palavras escritas por Pacheco Pereira, a propósito de uma viagem de um presidente da República à India… (em Abrupto 12/01/07)

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