A propósito da independência de Angola, deixei no "Duas ou três Coisas", blog de Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador em Angola durante os anos de 82 a 86, e mais tarde no Brasil e em Paris, o seguinte comentário:
Estava lá nessa noite. Em Luanda.
Eu e o meu grupo de amigos, estudantes universitários, todos afectos ao MPLA,
decidimos não estar presentes no local da cerimónia, na recém-denominada
praça 1º de Maio, por razões de segurança, como, aliás, o fez a esmagadora maioria da
população de Luanda que em casa ficou. Não era para menos: a cerca de 30 quilómetros de Luanda, em Kifandongo,
travava-se a mais dura das batalhas entre o exército do MPLA (as FAPLA),
apoiadas pelo exército cubano, e a FNLA de Holden Roberto alimentada pelo
exército da república do Zaire. Ouvia-se em Luanda a artilharia pesada. Não se
sabia qual o epílogo dessa batalha. Temia-se que o tenebroso Holden Roberto
pudesse entrar em Luanda. A chacina seria grande. O medo era justificado. Esse
temor levou a que a população ficasse em casa. Eu incluído. Hoje, lamento não
ter assistido a esse momento histórico. Mas é, hoje, um momento histórico que não
comemoro.
Comentário do Embaixador: “É minha impressão ou nestes
anteriores comentários há muito saudosismo, muito "Africa adeus"?”Caro embaixador,
Uma coisa é – para quem nasceu ou se
conheceu em África, como eu que fui para lá com dois anos de idade, e que lá
viveu durante muitos anos (regressei em 77) – ter saudades desses tempos que eram,
sem qualquer dúvida, “tempos coloniais”, outra coisa é ter saudades do
colonialismo. São coisas bem distintas. Haverá alguns que as terão, não o nego. Mas em muitos destes comentários, ajuízo
eu, há mais saudades dos “tempos colonias” do que do colonialismo. E é natural que assim seja. Em África ficou lá a nossa meninice, a nossa infância, as fisgas e as árvores onde caçávamos os passrinhos, os rios onde nos banhávamos e pescávamos. Ficaram lá os morros de salalé, os imbondeiros. Ficou lá o cheiro à terra que emergia depois da chuva. Ficaram lá todas estas memórias. E todos, incluindo os colonos, têm o direito à sua memória e à nostalgia que ela inevitavelmente, envolve. Ficaram lá também, enterrados, os nossos mortos – é bom não esquecer – avós, pais, tios, esposas e filhos. Para além de toda esta memória que por lá ficou sepultada – e que não é fácil revisitá-la: não se vai a África com a mesma facilidade com que se vai a Trá-os-Montes matar saudades – em muitos
deles permanecerá ainda uma réstia de grande amargura porque “viveram e sofreram esses
tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi”, como bem refer o embaixador.
Melo Antunes foi, dos militares
de Abril, o mais corajoso. Fez o 25 de Abril. Fez o 25 de Novembro e nesse
mesmo dia teve a coragem de matar à nascença uma “caça às bruxas” que se adivinhava,
ao afirmar que não haveria de democracia se o PCP fosse dela excluído (e hoje,
por razões óbvias, é bom recordá-lo). E já no fim da vida, ao contrário de
outros, que juntamente com ele tiveram papel preponderante na descolonização, teve
a coragem de reconhecer que poderiam ter feito melhor descolonização. É a
humildade dos grandes.
Subscrevo inteiramente este seu
último “post”, excluindo um “senão”, mas da maior importância: “a tragédia que
foi a colonização”. Reduzir a colonização a uma tragédia é um grande erro de
perspectiva histórica: o Brasil é o que é hoje, cultural e lusófonamente falando, “graças”
à colonização. Sem ela o Brasil até poderia ser bem melhor, mais evoluído, mas não seria a
mesma coisa… você que o diga. As suas fronteiras são o que são hoje, “graças” à
colonização. Hoje, os brasileiros orgulham-se delas e, se for preciso,
bater-se-ão por elas, mas antes foram os colonos que as desenharam, que as defenderam e que morreram por elas. A grandeza territorial do Brasil de que os brasileiros se ufanam foi conquistada, construída e defendida com o sangue dos colonos portugueses. O mesmo se passa com as fronteiras de Angola e com as dos outros
países (excepto Cabo Verde). Se hoje há cerca de 280 milhões de falantes em
português, e é uma das línguas mais faladas no mundo, “graças” à colonização.
Hoje fala-se em lusofonia, com a qual muita gente “enche a boca”, “graças” à
colonização e…, vou ousar dizê-lo sem pejo nenhum por ser historicamente verdade, graças aos
colonos! Graças aos colonos! Se se debita, e bem, aos colonos as tragédias da
colonização, que as houve e muitas, é inteiramente justo creditar-lhes algumas
das suas boas e belas heranças.
“Pode-se ir à Índia sem Vasco da
Gama? Talvez possa, mas para um português, não se deve. Não digo tanto “sem
Vasco da Gama”, mas “sem Goa”, sem a memória da nossa identidade que lá ficou
um pouco enterrada e está a cair aos bocados. Mas mesmo que já estivesse toda
no chão, enterrada por desprezos diversos, o lugar está lá, as almas estão lá
num canto qualquer a assombrar-nos. A história é assim: não se pode ir à Índia
com inocência absoluta, nem aliás os indianos nos responderão com inocência. A
história pesa. Não é saudosismo, é respeito por nós próprios que fomos
feitos por aqueles homens que por lá andaram à espadeirada, à pimenta, na
pirataria, brutos, cruéis, gananciosos, vaidosos, crentes, santos, líricos, o
que se queira, mas nossos.
Palavras escritas por Pacheco Pereira, a propósito de uma viagem de um
presidente da República à India… (em Abrupto 12/01/07)
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